Uma coisa não se pode negar: Boris Johnson, o novo primeiro-ministro do Reino Unido, é atrevido. Se tem a malícia da esperteza ou a ousadia da ignorância, isso ninguém sabe ainda. Nos três primeiros dias da volta do Parlamento de seu recesso de verão, que ocorreu na terça-feira 3, a conclusão pendia mais para a segunda hipótese. De uma hora para outra, Boris, como todo mundo chama o desgrenhado e amarrotado líder conservador, perdeu três votações na Câmara dos Comuns, e perdeu feio. Na primeira, os parlamentares se deram a iniciativa de propor projetos de lei (normalmente, discutem e votam o que o governo apresenta). Na segunda, em duas etapas, aprovaram por diferença de quase trinta votos (uma larga margem por ali) a proibição de que o país saia da União Europeia sem acordo prévio e a exigência de que, caso o acordo não seja alcançado até o prazo final de 31 de outubro, o primeiro-ministro peça à UE uma extensão (a terceira) até 31 de janeiro de 2020.
Boris reagiu propondo a antecipação das eleições de 2022 para 15 de outubro. De novo, foi nocauteado. Para coroar a temporada de desgostos, seu próprio irmão, Jo Johnson (na capa dos tabloides, são BoJo e JoJo), secretário do governo, pediu demissão por discordar das táticas que ele vem adotando. O sumo da semana, porém, não foi a pancadaria no premiê. Ele sai enfraquecido, sem dúvida. Mas o que se viu na guerra dos tronos de Westminster é que o nó do Brexit, que sufoca a ilha há três anos, continua longe de ser desatado. A impressão geral é que o primeiro-ministro calculou mal o impacto de uma manobra para cercear a ação da maioria parlamentar — aí incluídos vários membros de seu próprio partido —, que ou não quer o Brexit sem acordo ou não quer Brexit nenhum.
O normal seria os legisladores voltarem do recesso, trabalharem por uns dez dias, interromperem os debates por duas semanas para as convenções partidárias e retomarem suas cadeiras no máximo no início de outubro. Na surdina do recesso, Boris tomou a drástica decisão de suspender a atual sessão do Parlamento a partir do início da semana que vem. Por força das leis não escritas que regem o país, a nova sessão só começa depois de 14 de outubro, quando a rainha fará seu tradicional discurso em Westminster, toda paramentada, de cetro e coroa. Ou seja: o Parlamento volta a funcionar de verdade quando faltarem poucos dias para o fatídico 31 de outubro. Boris podia ter feito o que fez? Sim, mas é raro que uma troca de mandatários do mesmo partido redunde em nova sessão — geralmente, ela segue sem interrupções.
O resultado foi que os parlamentares voltaram à ativa batendo os tambores de guerra e impuseram as três derrotas ao governo. Não ajudou a acalmar os ânimos o fato de o primeiro-ministro ter simplesmente expulsado do Partido Conservador 21 membros que votaram contra ele, quase todos figurões. “Ou votam com o governo ou morrem”, avisara antes. Com esse gesto, aliado a defecções prévias, sua maioria parlamentar por apenas um voto, graças à coalizão com o diminuto Partido Unionista, da Irlanda do Norte, se transformou em minoria por 43 votos. Em teoria, uma moção de desconfiança derruba este governo e os trabalhistas assumem. Mas, diante dessa possibilidade, os outros partidos — e os conservadores rebeldes — tremem. A moção, portanto, repousa na gaveta das possibilidades remotas.
Aprovada a lei que proíbe o Brexit sem acordo e ordena sua nova extensão, ela seguiu para a Câmara dos Lordes, um órgão que não é eleito (o requisito é ter um título de nobre) e que, por tradição — e os britânicos, tirando Boris, adoram uma tradição —, não derruba projetos vindos dos Comuns. Aliados do primeiro-ministro lá apresentaram 86 emendas, apostando na prorrogação do debate pelo menos até o fim da semana. Os lordes levaram cobertor, comida e bebida, prevendo virar noites, mas Boris mudou de ideia, mandou que os aliados retirassem emendas e apressou a aprovação lá também. O passo seguinte é a lei voltar para a Câmara dos Comuns, para ajustes, e depois seguir para a chancela da rainha, outro gesto pró-forma. Como a sessão parlamentar deve ser suspensa logo no começo da semana, há uma chance de que ela não chegue até Buckingham para Elizabeth dar o seu aval. Aí, Boris ganha tempo — qualquer legislação inconclusiva ao fim da atual sessão tem de começar do zero na próxima.
Mas também pode ser que o intempestivo primeiro-ministro dê meia-volta e resolva acabar com os esforços para melar a legislação que proíbe Brexit sem acordo no dia 31 e exige nova protelação. O governo vai reapresentar seu pedido de antecipação de eleições na segunda 9 e espera usar a lei como moeda de troca: o.k., ele desiste de sair a qualquer custo no fim de outubro (um gesto até há pouco inimaginável para Boris), concorda com mais um adiamento do prazo e, em compensação, o Parlamento aprova as eleições antecipadas. É uma manobra arriscada, do tipo tudo ou nada — é assim que Boris joga. O eleitorado trabalhista e conservador vem encolhendo consideravelmente, cansado da guerra do Brexit — um fator que ficou evidente na eleição para o Parlamento Europeu, em maio. Segundo pesquisa eleitoral da consultoria Deltapoll, publicada no domingo 1º, os conservadores contam com 11 pontos porcentuais de vantagem sobre o Partido Trabalhista. O líder trabalhista Jeremy Corbyn, o mais esquerdista da história do partido, “é popular entre os jovens, mas tem pouquíssimo apelo entre os mais velhos e moderados”, diz John-Paul Salter, cientista político da University College, em Londres. Informação para Boris matutar em cima: os efervescentes debates parlamentares transmitidos pela televisão fizeram com que, em menos de uma semana, mais de 100 000 britânicos se registrassem para votar — na maioria, jovens que não se deram a esse trabalho quando o Brexit foi posto em votação e aprovado por 52%, em 2016.
Se ganhar essa eleição e, de quebra, amarrar alianças consideradas impossíveis no atual clima de polarização radical, o premiê ficará fortalecido para fazer o que bem entender. Ou não: a antecessora, Theresa May, tentou essa artimanha, viu a maioria do seu partido encolher e saiu em situação pior ainda. Se perder, ou vencer por margem mínima, tudo continuará como está — enrolado e sem solução.
Os problemas não acabam aí — há mais coisas entre o céu, a terra, o Reino Unido e a União Europeia do que sonha a filosofia política ortodoxa. A UE pode não aceitar a extensão, ou reduzi-la a poucas semanas, enquanto se prepara para um inexorável Brexit sem acordo. A Comissão Europeia, órgão executivo do bloco, anunciou que pretende tirar 780 milhões de euros da verba que reserva para a ocorrência de desastres naturais e usar os recursos para amenizar o baque financeiro que um divórcio litigioso com o Reino Unido certamente vai provocar. Também a equipe de Boris trabalha para conter os danos do Brexit sem acordo. Os dois lados tiveram bastante tempo para se preparar: o prazo inicial do Brexit era 29 de março e, desde então, a ameaça de os conservadores “duros” chutarem a porta sempre esteve presente. Fora do Parlamento, as ruas pegam fogo, com seguidas manifestações no país todo contra e a favor de Boris e do Brexit. No fim de semana após o anúncio da suspensão da sessão parlamentar, ocorreram mais de 100 em Londres e outras grandes cidades. Enquanto isso, os ponteiros do Big Ben continuam avançando.
Publicado em VEJA de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651