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As polêmicas em torno da reconstrução da Catedral de Notre-Dame

O motor da modernidade se volta para a joia gótica que está sendo reerguida depois de tragada por um incêndio. E os mais puristas se insurgem

Por Matheus Deccache 27 nov 2022, 08h00

Esplendorosa expressão da arquitetura gótica, a Catedral de Notre-Dame, um potente símbolo da França e da própria cristandade, foi erguida em Paris entre os séculos XII e XIV, tempo em que a cidade se revelava um efervescente centro de irradiação da cultura na Europa. Viu-se de tudo nesse que se tornou o palco de variados capítulos da história — um deles a Revolução Francesa, quando se converteu em Templo da Razão e teve seus sinos derretidos para a confecção de armas. Mais tarde, revestiu-se novamente de glória quando Napoleão I a escolheu para a cerimônia em que se fez imperador, em 1804, episódio famoso por ter, ele mesmo, levado a coroa à cabeça. No século seguinte, o edifício andava em tão mal estado que se cogitou demoli-lo, mas seguiu de pé, com a boa vontade das autoridades despertada por Victor Hugo com seu O Corcunda de Notre-Dame, livro que deu projeção mundial à joia medieval. Em 2019 veio o derradeiro baque: a igreja foi engolfada pelas chamas de um incêndio do qual, ao que tudo parecia, não sobreviveria. Pois mais uma vez resistiu e, agora, passa por uma profunda obra de reconstrução que, bem ao modo francês, acende uma polêmica que põe de um lado os mais puristas e, de outro, uma turma embalada pelo motor da modernidade.

Mal a catedral havia sido consumida pelas labaredas, naquele desbotado 15 de abril, e doações na casa dos bilhões começaram a afluir para os cofres que derramariam a dinheirama para reerguer o icônico prédio. E aí as divergências já afloravam. O presidente Emmanuel Macron foi o primeiro a vir a público defender a tese de que o pináculo que coroava a igreja, dolorosamente partido, deveria ser concebido agora com ares contemporâneos. A ideia não vingou, mas outras que conferem à catedral de quase 1 000 anos toques do século XXI prosperaram em meio à grita de historiadores, museólogos e especialistas em conservação. Eles até foram ouvidos, mas suas convicções não prevaleceram. Ficou decidido que a nova Notre-Dame, prevista para estar tinindo em 2024, ano em que Paris abrigará a Olimpíada, contará com intervenções de artistas de hoje, fazendo torcer narizes mais tradicionais. “O que o fogo poupou a diocese quer destruir”, registrou em carta uma centena de intelectuais franceses.

TRADIÇÃO - Carpinteiros serram carvalhos: o novo velho teto -
TRADIÇÃO – Carpinteiros serram carvalhos: o novo velho teto – (./AFP)

O projeto apresentado pela diocese parisiense prevê a instalação de obras de arte contemporâneas lado a lado com pinturas de outras épocas, além de efeitos de iluminação na nave (já magnificamente banhada pela luz natural que se infiltra pelas belas rosáceas), bancos com rodinhas e a projeção de trechos da Bíblia nas espessas paredes. Também entrou no rol a reorganização interna, retirando de exposição certas peças para ceder espaço aos cerca de 13 milhões de visitantes que passam por lá todo ano — o dobro dos que visitam a inevitável Torre Eiffel.

E dá-lhe argumentos prós e contras, estes alertando sobre a “disneyficação” da catedral. “A igreja é uma senhora idosa com uma história que devemos respeitar. Não pode ser apagada com um golpe de caneta”, afirmou o editor-chefe da revista La Tribune de L’Art, pondo fermento no debate. O badalado designer francês Philippe Stark também deu seu pitaco, sugerindo a criação de um “colégio de cientistas” para uma reflexão permanente e mais funda sobre as mexidas na Notre-Dame. “Temos de tirar a discussão do reino da arquitetura”, defende. “Há tantas coisas lindas a fazer, mas para isso é preciso sair desse microscópio.”

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ASSIMILADA - Pirâmide do Louvre: o “delírio faraônico” virou um marco de Paris -
ASSIMILADA - Pirâmide do Louvre: o “delírio faraônico” virou um marco de Paris – (Esra Taskin/Anadolu Agency/Getty Images)

É comum que intervenções em monumentos seculares agitem as labaredas, sobretudo em sociedades para as quais tais edifícios fazem inflar o orgulho nacional. Quando uma pirâmide de vidro e aço brotou em frente ao Museu do Louvre, nos anos 1980, o próprio diretor renunciou ao cargo em protesto contra “os riscos arquitetônicos” que representava — um “delírio faraônico” do então presidente François Mitterrand, dizia a população. Passado o turbilhão, atualmente a maioria considera que ela convive em perfeita harmonia com o majestoso palácio, ajudando a atrair multidões. O tempo, portanto, é um fator para a assimilação do novo, mas não encerra a questão. “Projetos inovadores são possíveis desde que respeitem a autenticidade do original, o seu espírito e personalidade”, enfatiza Sylvain Colombero, professor da francesa Grenoble École de Management.

No curso da acalorada controvérsia, uma concessão foi feita aos defensores do uso de técnicas medievais para revitalizar a Notre-Dame: o destruído telhado será substituído por outro, à base de 1 000 carvalhos que exigem armazenamento de até dezoito meses para que se baixem os níveis de umidade. Daí resultará um conjunto de 25 treliças com as idênticas medidas do passado, trabalhadas manualmente por raros especialistas — decisão, aliás, que sacudiu os ambientalistas, revoltados pelas árvores arrancadas com esse fim. Para suavizar mais essa onda de protestos, o entorno da catedral alojará um jardim ampliado e um estacionamento subterrâneo na área será convertido em bucólica passagem para o Rio Sena. Um sistema de resfriamento que lançará água ao solo em dias de calor inclemente também está nos planos. “Uma cidade como a nossa não pode mais ignorar as mudanças climáticas”, prega a prefeita Anne Hidalgo. E assim, de polêmica em polêmica, a Notre-Dame, que chegou a se transformar em um amontoado de entulhos pela fúria das chamas, reescreve mais um capítulo de sua longeva história.

Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817

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