Foi a surpresa do ano: louvado como o único país da América do Sul que deu certo, o Chile, de uma hora para outra, mergulhou no mesmo caldeirão de insatisfações populares em que fervem praticamente todos os seus vizinhos. O estopim veio com o aumento no preço da passagem do metrô de Santiago, em outubro. As ruas da capital foram tomadas por protestos que, em questão de horas, se espalharam para outras cidades e desembocaram em anarquia generalizada. A nação desenvolvida e bem ordenada pegou fogo, e nenhuma medida até agora conseguiu controlar totalmente as labaredas.
Em 2019, o mundo tomou conhecimento de que o modelo econômico adotado pela ditadura militar, mantido depois que ela acabou e incensado pelos altos índices de sucesso, cultivou, nesses anos todos, um caldo de ressentimento na população mais pobre, abatida pelo elevado custo de vida, pelos baixos salários e, mais que tudo, por um achatamento das aposentadorias bancadas pelo setor privado. Empossado há 21 meses, o governo de Sebastián Piñera primeiro reprimiu os manifestantes com dureza — fala-se em mais de vinte mortos, 2 000 feridos e quase 10 000 presos. Ultimamente, vem desfiando um inesgotável pacote de bondades com que espera conter os ânimos.
Passeatas, palavras de ordem e depredações foram a regra neste ano no continente sul-americano. À direita e à esquerda, populações fartas das desigualdades perenes, da corrupção enraizada e de líderes que se agarram ao poder puseram a boca no trombone. Além dos chilenos, emprestaram seu sotaque à grita venezuelanos, peruanos, equatorianos e colombianos. A forte voz dos insurgentes também ecoou na Europa, na Ásia, no Oriente Médio, no Norte da África. Que fique claro: não se trata de um movimento único em torno de um propósito comum. Cada multidão que se engajou nessas jornadas de 2019 carregava seu cesto próprio de reivindicações. Em comum, só a onipresença das redes sociais — o novo megafone universal dos descontentamentos da sociedade.
Publicado em VEJA de 1º de janeiro de 2020, edição nº 2667