“Você vai levar uma bala na cabeça.” A ameaça, capturada em vídeo que viralizou nas redes sociais, foi pronunciada por dois policiais que abordaram um jovem motorista em Nanterre, na periferia de Paris. Dito e feito: o carro começou a se mover e ele levou um tiro que atingiu seu peito. A morte de Nahel Merzouk, 17 anos, de descendência argelino-marroquina, desencadeou uma onda de protestos que desandou em baderna e vandalismo e trouxe à tona, mais uma vez, o antigo ressentimento com a polícia, acusada de racismo e uso excessivo de força contra a população pobre e imigrante. O governo mobilizou 45 000 agentes de segurança para conter os tumultos em diversas cidades, que deixaram em seu rastro de destruição veículos queimados, prédios grafitados e com vidros quebrados, 700 policiais feridos e mais de 3 400 presos. Enquanto o presidente Emmanuel Macron se reunia com prefeitos de municípios afetados, opositores à esquerda e à direita apontavam a crise como evidência de que o governo é incapaz tanto de garantir a segurança pública quanto de reduzir a desigualdade social.
É fato amplamente conhecido, exposto em livros e filmes e até motivo de piada, que os franceses não perdem uma chance de ir à rua protestar, mas o calvário de Macron na via-crúcis das manifestações populares tem sido particularmente pesado. A ira dos “coletes amarelos” contra o que percebiam como desatenção das elites para a decadência das cidades do interior perturbou a vida do país por meses seguidos e só foi contida pela chegada da pandemia. Passado o lockdown, a alta do custo de vida reforçou o descontentamento geral, um sentimento que embalou marchas e mais depredação em todo o país contra a reforma da Previdência que o governo impôs a toque de caixa — só neste ano foram catorze greves nacionais em protesto pelo aumento da idade de aposentadoria de 62 para 64 anos.
Os distúrbios de agora não têm relação direta com o governo e estão calcados em uma divisão profunda e irreconciliável na sociedade francesa. Mas some-se a isso a imagem de Macron como político arrogante e centralizador de quem ninguém gosta, à frente de uma minoria centrista espremida entre um bloco de extrema esquerda e outro de extrema direita, e tem-se o fermento que faz inchar a raiva e a revolta palpáveis na França dos dias de hoje.
O primeiro reflexo do governo e da população foi condenar o tiro em Nahel, adolescente com passagens pela polícia que não representava nenhuma ameaça. O policial responsável foi preso sob suspeita de homicídio culposo. “Nada justifica a morte de um jovem”, disse Macron. O choque inicial dos franceses, no entanto, se transformou em repúdio à violência generalizada dos protestos, que levaram a prejuízos no setor privado calculados em 1 bilhão de euros, com mais de 200 estabelecimentos e 300 bancos vandalizados. Jean-Luc Mélenchon, líder do partido esquerdista França Insubmissa, culpa o descaso do governo com o barril de pólvora multiétnico sempre pronto a explodir nos bairros pobres. Do outro lado, a líder do Reunião Nacional, Marine Le Pen, acusa Macron de negligência com a segurança e brandura com a imigração. “Nesse ringue, os tumultos jogam mais a favor da agenda da lei e da ordem da direita”, avalia Vivien Schmidt, pesquisadora de estudos europeus da Universidade Harvard.
As causas da morte de Nahel e da onda de violência nas ruas que se seguiu estão nos banlieues, periferias carentes onde vive uma população de baixa renda composta de franceses descendentes de imigrantes, a maioria do Norte da África, que se sente menosprezada pelos demais e os trata com menosprezo. Nos últimos vinte anos, o governo gastou 60 bilhões de euros para melhorar a qualidade de vida dos mais de 5 milhões nessa situação, com pouco resultado. Nos subúrbios, 57% das crianças vivem na pobreza, três vezes mais adultos estão desempregados e a relação com a polícia é de alta tensão. Uma lei de 2017, que afrouxou restrições ao uso de armas quando um motorista se recusa a parar por ordem policial, é conectada à morte de dezessete pessoas no último ano e meio — boa parte de origem africana. “A sensação é de que os policiais têm licença para matar”, diz Julie Gervais, socióloga de Sorbonne.
Cada episódio como o de Nahel é estopim para novos tumultos, depredações e saques, que, por sua vez, elevam a demanda por segurança. No país das manifestações, porém, a ação policial é sempre problemática, ainda mais se tratando de uma força que frequentemente se excede na repressão — uma lei que proibiu a divulgação de vídeos de violência policial nos protestos dos coletes amarelos, por exemplo, foi criticada e desobedecida em todo o país. Enredado nesse labirinto, com a sociedade cada vez mais raivosa e propensa a protestar, Macron pode prever mais dias difíceis pela frente. E a Olimpíada — de Paris, em 2024 — nem começou.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2023, edição nº 2849