A história parece saída do túnel do tempo. Um opositor bota a boca no trombone e cutuca o regime em vigor, que, incomodado, recorre à arma das mais antigas — o veneno. Foi assim na Rússia governada em pleno século XXI por Vladimir Putin, dirigente praticamente vitalício, amparado por um Parlamento que se curva a ele e sem ninguém com força para lhe tirar o Kremlin. A vítima, o advogado Alexei Navalny, 44 anos, a voz do contra mais potente por lá, embarcara na manhã de 20 de agosto em um voo da Sibéria para Moscou. Não deu meia hora da decolagem, e ele começou a se sentir mal — “um tormento”, como descreveria mais tarde o desconforto. O avião fez um pouso de emergência no meio do caminho, em Omsk, onde Navalny chegou em estado de coma. Ali ficaria retido dois dias, até que, graças ao esforço da mulher, Yulia, conseguiu ser removido para um hospital de Berlim. Deixou o coma induzido em 7 de setembro e, duas semanas depois, postou a foto ao lado com Yulia ao colo. Passado o pesadelo, ele disse: “Achei que era o fim”.
Embora os médicos russos garantissem se tratar de uma “desordem metabólica”, ficou comprovado que Navalny tinha em seu sangue traços de Novichok, uma toxina que ataca o sistema nervoso. Sua ONG afirma que a substância se encontrava em uma garrafa de água no quarto do hotel onde havia se hospedado. Com os direitos políticos cassados, por diversas vezes ele foi detido e, em 2019, chegou a apresentar uma reação alérgica que levantou uma suspeita de envenenamento — prática sabidamente comum dos serviços secretos russos, que ainda abraçam métodos truculentos sem se incomodar em esconder a autoria. Esse é um traço que distingue a FSB, sucessora da soviética KGB, da CIA americana, por exemplo. Navalny não foi o primeiro a experimentar veneno. Desde o início dos anos 2000, houve pelo menos quatro casos de adversários de Putin que tiveram o mesmo destino. Torpedeado pela comunidade internacional, o Kremlin, que, aferrado ao passado, também conta com um exército de hackers prontos para intervir em assuntos externos, tratou o caso como “campanha de desinformação em massa” e “diplomacia de megafone”. Atualmente, Navalny, o opositor que ousou apontar o dedo para Putin, vive na Alemanha.
Publicado em VEJA de 30 de dezembro de 2020, edição nº 2719