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Argentina: o cabo de guerra entre Fernández e Kirchner

Com a economia em escombros e a popularidade do governo em queda livre, a vice manobra para se distanciar do presidente que ajudou a eleger

Por Julia Braun Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 27 nov 2020, 10h21 - Publicado em 27 nov 2020, 06h00

Os argentinos sabem melhor do que ninguém o significado de uma crise. Mas, neste turbulento ano de lances dramáticos — culminando com a morte de Maradona (leia a reportagem na pág. 62) —, a pandemia, sempre ela, contribuiu pesadamente para agravar a enésima recessão que o país sofre e que já dura quase três anos. Ao lado da oitava pior taxa de mortalidade por Covid-19 do mundo, a dívida externa passa dos 100 bilhões de dólares, a economia despenca e a pobreza não para de aumentar. Para piorar, surge agora mais um problema: o presidente Alberto Fernández e sua vice, Cristina Kirchner, não se falam há quarenta dias. Levando-se em conta que, no consenso das especulações sobre a dupla, Kirchner pôs Fernández no cargo acima do dela com a intenção de comandar o país dos bastidores, esse distanciamento, mais para político do que social, tem causado arrepios. A dupla insiste em dizer que a relação segue estável, mas fontes da Casa Rosada espalham que a última vez que os dois trocaram mensagens foi em outubro. Pouco antes, a ex-presidente havia publicado uma carta aberta em que não escondia sua objeção à equipe nomeada pelo presidente. “Há funcionários públicos que não estão trabalhando”, alertava.

Ao tecer críticas ao número 1 da Casa Rosada, Kirchner busca descolar sua imagem de um governo cada vez mais impopular. Abatido pela pandemia, o PIB argentino caiu 19,1% no segundo trimestre do ano, o maior colapso trimestral desde o início da estatística, em 1981. O recuo alavancou a taxa de pobreza para além dos 40%, o que quer dizer que quase metade da população não tem recursos para comprar produtos básicos — um drama refletido nas imagens de famílias vivendo nas ruas das grandes cidades. A estratégia do ministro da Economia, Martin Guzmán, para reverter esse estado de coisas foi encaminhar o país para um ajuste duríssimo, talvez o maior já implementado por um governo peronista. Guzmán suspendeu o auxílio emergencial que socorreu quase 10 milhões de argentinos, planeja reajustes nos planos de saúde e marcou para dezembro o fim da proibição de demitir trabalhadores, o que pode levar a uma enxurrada de demissões em 2021.

Depois de colher os louros da reestruturação de uma dívida de 65 bilhões de dólares com credores privados em agosto, Guzmán negocia agora um acordo que reformule as condições de pagamento de outra dívida, essa de 44 bilhões, com o Fundo Monetário Internacional (FMI) — um espinho cravado na garganta dos argentinos, escaldados com os apertos econômicos impostos pelo órgão. Resultado: em outubro, a aprovação do governo ficou abaixo dos 50% pela primeira vez — e a expectativa é que siga em queda. “Kirchner procura se afastar de qualquer responsabilidade na crise para, no futuro, se posicionar como uma alternativa”, avalia Miguel De Luca, analista político da Universidade de Buenos Aires. Enquanto posa como quem não tem nada a ver com o desastre, a vice-presidente vem se dedicando a salvar seu futuro em outro departamento: a Justiça. Alvo de doze processos, seis com pedido de prisão preventiva, ela aproveita a imunidade que o cargo lhe proporciona e usa sua influência para substituir juízes e adiar os julgamentos.

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RELENTO - Morador de rua em Buenos Aires: 40% dos argentinos na pobreza – (Ricardo Ceppi/Getty Images)

Um projeto que lhe é particularmente caro envolve uma reforma no Ministério Público Federal e a escolha de um aliado seu para encabeçar a pasta — e aí se encontra a origem da queda de braço entre o presidente e sua vice. Os dois não conseguem chegar a um consenso sobre o nome a ser indicado, ao mesmo tempo que encontram forte resistência da oposição para aprovar qualquer candidato ligado aos peronistas. A ala conservadora também bloqueia na Câmara dos Deputados outra proposta elaborada que pode facilitar a vida de Kirchner na condição de ré. Trata-se de um projeto para a criação de tribunais criminais na capital Buenos Aires e mais nove câmaras de apelação e sessenta tribunais federais no interior. Tal pulverização do poder enfraqueceria os magistrados federais que hoje conduzem os processos contra a vice-presidente e seus aliados.

Kirchner também usa a maioria kirchnerista no Congresso para promover a própria agenda econômica. Por iniciativa de seu filho, o deputado Máximo Kirchner, a Câmara aprovou um imposto sobre grandes fortunas que pretende arrecadar cerca de 3 bilhões de dólares para a recuperação. A proposta ainda precisa passar pelo Senado, mas é usada pela ex-presidente para mostrar que segue ao lado dos trabalhadores. Em 2021, haverá eleições legislativas e municipais que podem definir o futuro da desgastada aliança de governo. “Ela não vai se romper até lá, porque os diferentes setores precisam uns dos outros para se manter de pé”, diz Alejandro Coronel, professor da Pontificia Universidad Católica Argentina. Mas se a ala de Fernández se enfraquecer, a política nacional pode enfrentar mais um nó. “Os argentinos vivem em permanente tensão, sem saber o que esperar do futuro”, afirma Coronel. É com essa nuvem sombria sobre a cabeça que a nação agora chora por Maradona.

Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715

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