“Uma facada nas costas.” Foi assim que o governo da França definiu a assinatura de uma parceria militar dos Estados Unidos com a Austrália e o Reino Unido que pretende equipar o maior país da Oceania com uma frota de submarinos com propulsão nuclear. Apelidada de Aukus (as iniciais das três potências, em inglês), a iniciativa encabeçada pelo presidente Joe Biden para fazer frente à China e sua influência cada vez mais pronunciada nos mares e terras ao seu redor mexeu, como nunca antes, com os brios do mais antigo e fiel parceiro americano na Europa — não só o Eliseu foi o último a saber, como viu rolar por água abaixo um contrato fechado com os australianos em 2016, e agora cancelado, de venda de doze submarinos movidos a diesel, no valor de 65 bilhões de dólares. “Isso não é algo que se faça entre aliados”, vociferou o ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian, comparando a conduta de Biden à de seu antecessor e antagonista, o truculento Donald Trump.
O presidente Emmanuel Macron chamou de volta os embaixadores em Washington e Camberra, o carimbo de insatisfação na diplomacia internacional (comenta-se que não convocou o de Londres para rebaixar os britânicos a um papel secundário no caso). Também cancelou a festa programada em Washington para comemorar os 240 anos de uma batalha vencida pelos franceses, aliados de primeira hora, na guerra pela independência dos Estados Unidos. A Austrália foi acusada, sem meias-palavras, de mentir sobre suas intenções — o que de fato aconteceu. Enquanto mantinha seguidas reuniões para tratar da compra dos submarinos franceses, o governo do primeiro-ministro Scott Morrison discutia com a Casa Branca, desde janeiro, a troca de fornecedor. À França, alertada para a mudança poucas horas antes do anúncio oficial, o Ministério da Defesa da Austrália alegou que agiu em prol da segurança nacional, assegurando equipamentos de tecnologia mais avançada. Não convenceu ninguém. “Estamos vendo uma clara falta de transparência e lealdade”, disse o presidente do Conselho Europeu, Charles Michell.
Os Estados Unidos são uma das poucas potências ocidentais com quem os franceses nunca estiveram em guerra e, tirando a oposição do presidente Jacques Chirac à invasão ao Iraque em 2003, os dois países nunca travaram embates ideológicos ou políticos em sua relação, reforçada pelos anos em que Thomas Jefferson, um dos pais da independência americana, serviu como embaixador em Paris e apoiou os ideais republicanos que desembocariam na Revolução Francesa. No contexto mais amplo da União Europeia, ainda ressabiada depois de quatro anos de esnobadas por parte do furacão Trump, a atitude de Biden pegou mal — ele chegou ao governo justamente prometendo restaurar a cooperação e a confiança esgarçadas. O Aukus pode ser um empurrão para os defensores de uma Europa que atenda a seus interesses acima de alianças multinacionais — entrando aí o “exército europeu” que Macron propagandeia. “A Casa Branca terá de ir além das palavras e buscar uma maior cooperação comercial e militar com a França para compensar sua negligência”, diz Richard Boucher, professor da Universidade Brown e ex-diplomata do Departamento de Estado.
A falta de tato nesse episódio vem reforçar a impressão, ressaltada no fim desastrado da interferência militar americana no Afeganistão, de que Biden e sua equipe ainda têm pouca habilidade em medir as consequências de seus atos, sobretudo quando se trata de questões cruciais para o governo. O nó, nesse caso, é a ofensiva contra a China, alvo de sutis ameaças de Biden em seu discurso na Assembleia-Geral da ONU. A Casa Branca quer a todo custo conter o avanço hegemônico de Pequim no mundo e, nesse intuito, ter submarinos nucleares a seu dispor nas águas australianas é um trunfo. “Os Estados Unidos pretendem cultivar o maior número possível de aliados nas vizinhanças da China, e a localização da Austrália é estratégica para esse objetivo”, diz Ryan Hass, analista do Brookings Institution. A união de forças com o Reino Unido — que teve nesse episódio sua primeira chance de cantar de galo no cenário internacional desde que se separou da UE — também é um recado para Pequim: o comando militar britânico despachou um porta-aviões de última geração para a região em maio. Passado o pior da crise, Macron e Biden conversaram por telefone e concordaram que a ação teria “se beneficiado de consultas abertas entre aliados nos assuntos de interesse estratégico”, segundo um comunicado conjunto. Na Casa Branca de Trump, a regra era morder. Na de Biden, mudou para assoprar depois de morder.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757