Em discussões acaloradas, como de hábito, na política, em redutos conservadores, manifestações feministas e pregações religiosas, o aborto esteve no centro dos debates sociais ao longo de 2022. E o mundo mostrou que ainda está longe de estabelecer um consenso em torno do tema. Houve avanços, como na Colômbia, onde a interrupção da gravidez até a 24ª semana foi descriminalizada, mas retrocessos lamentáveis. O mais emblemático aconteceu nos Estados Unidos, onde a Suprema Corte suspendeu o direito ao aborto até a 28ª semana de gestação, garantido desde 1973 pelo mesmo tribunal que agora, em junho de 2022, decidiu revogá-lo. A primeira leitura sobre a decisão foi a de que ela poderia ser imediatamente adotada por 26 dos cinquenta estados americanos onde já existiam legislações que restringiam ou proibiam o procedimento. A medida incidiria, inclusive, em gestações resultantes de estupro e incesto. Atualmente, treze estados seguem a determinação da Suprema Corte e quatro proibiram a interrupção da gravidez a partir de quinze semanas. Na Geórgia, a mulher pode abortar, mas somente até a sexta semana, quando a maioria nem sequer sabe que está grávida. Ou seja, é um direito para inglês ver.
No Brasil, repetiu-se o equívoco de sempre ao tratar a questão sob o viés moral e não pela óptica da saúde pública, como se deve, perdendo-se novamente oportunidades de discuti-la com maturidade. Houve dois momentos para isso. Primeiro, quando ocorreu o descumprimento da lei, em junho, depois de uma juíza de Santa Catarina negar o direito de abortar a uma menina de 11 anos que havia sido vítima de estupro. Somente após a repercussão e mobilização da família, a gestação foi interrompida. A segunda chance aconteceu durante a corrida à Presidência da República. Em uma campanha na qual a pauta de costumes deu o tom — conservador — os candidatos se esquivaram das discussões. É verdade que decisões sobre o tema não cabem ao presidente da República, mas ao Congresso Nacional. Contudo, seria produtivo que, em momentos nos quais o país discute seu futuro, o direito ao aborto fosse finalmente debatido sem tabu.
Publicado em VEJA de 28 de dezembro de 2022, edição nº 2821