O que era para ser a pá de cal definitiva nos últimos resquícios da ditadura de Augusto Pinochet no Chile acabou em clima melancólico — e a Constituição aprovada pelo general em 1980 segue em vigor, depois que duas tentativas de substituí-la foram enterradas pela polarização entre esquerda e direita, de um lado, e, de outro, pelo absoluto tédio e desgosto da população com as picuinhas políticas. Mais triste ainda é a constatação de que, postas as cartas na mesa, a manutenção da Carta do período ditatorial foi uma vitória do bom senso. Vontade não faltava para a mudança: quando a discussão começou, em meio a uma onda de protestos violentos contra a desigualdade em 2019, esmagadores 78% dos chilenos disseram “sim” à troca em um referendo histórico. Os projetos apresentados desde então, no entanto, continham absurdos e retrocessos em série.
No primeiro, a assembleia constituinte eleita para redigir o novo texto foi dominada pela extrema esquerda e afastou a maioria dos eleitores com propostas progressistas absurdas — como o direito à alimentação “culturalmente apropriada” e à “desconexão digital”, entre outras —, rejeitadas em 2022 por quase dois terços dos votos. Na segunda tentativa, a nova assembleia, dominada agora pela extrema direita, apresentou ideias ainda mais conservadoras que as da Carta de Pinochet — como o conceito da “objeção de consciência”, para dar a profissionais a opção de se negar a praticar aborto, aprovado no país sob certas condições, e a restrição de direitos da comunidade LGBTQIA+. No domingo 17, 56% dos eleitores rechaçaram esse projeto.
À primeira vista, o presidente Gabriel Boric, de esquerda, ganhou um respiro por não ter de promulgar uma Constituição encabeçada pelo arqui-inimigo político José Antonio Kast, líder de extrema direita, com quem disputou a eleição em 2021. Mas sua situação atual não permite comemorações: não conseguiu passar quase nada no Congresso ao longo do processo constitucional e sua aprovação estacionou em míseros 33%. “A rejeição do texto foi uma derrota para Kast”, diz Leandro Lima, da consultoria Control Risks. “Porém, não significa uma vitória de Boric.” O presidente sente os efeitos da economia estagnada pós-pandemia e do descontentamento da população com o racha entre os dois. Uma pesquisa do Centro de Estudos Públicos revelou que 70% dos chilenos preferem líderes políticos que buscam o consenso em vez de defender a ferro e fogo suas agendas, um salto de 11 pontos percentuais comparado a junho. Prova de que o Chile está cansado das ideologias que não conversam com a realidade.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2023, edição nº 2873