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À procura de si mesmo

Ao circular entre os poderosos no G20 de Buenos Aires, Macri tenta reabilitar a imagem de gestor eficiente, demolida por uma das piores crises do país

Por Thais Navarro
Atualizado em 4 jun 2024, 16h16 - Publicado em 30 nov 2018, 07h00

Eleito presidente em 2015, o empresário Mauricio Macri deu fim a mais de uma década de reinado do casal Kirchner na Casa Rosada e trouxe a promessa de mudança: com discurso liberal sem ser raivoso, abriu o mercado de capitais, enxugou a máquina estatal e ainda, sorte do destino, surfou na disparada do preço dos cereais, produto de exportação por excelência da Argentina. Mas o vento virou, embalado por uma das piores secas da história, que derrubou as exportações, e pela forte oposição a medidas que mexiam no bolso da população. Hoje os indicadores econômicos chafurdam na lama, arrastando para o buraco a popularidade de Macri, na faixa dos 23%. Mesmo assim, ele briga para reencontrar-se e viabilizar sua reeleição em 2019. A reunião do G20, sediada em Buenos Aires nesta sexta-­feira, 30, e no sábado 1º, é para ele uma chance de projetar a imagem de líder que transita com desenvoltura entre os mais poderosos do mundo.

Quando ficou acertado que Buenos Aires acolheria o G20, em junho de 2016, a vitrine que Macri tinha para exibir era bem diferente. Agora, as ruas andam tomadas por protestos — ou violência pura e simples, como ocorreu no dia da final da Copa Libertadores da América (veja o quadro na pág. 66). Para garantir a segurança do G20, o governo acionou 22 000 policiais e decretou feriado nacional durante a reunião. O próprio Macri sugeriu à população que aproveitasse para viajar. Entende-se a preocupação. A lista de presença vai de Donald Trump, Xi Jinping e Vladimir Putin ao príncipe saudita Mohammed Bin Salman, cada vez mais enredado nos mistérios do assassinato do jornalista Jamal Khashoggi.

Mauricio Macri
NA LUTA – Macri: medidas para tentar sair da crise e ser reeleito em 2019 (Geoffroy Van Der Hasselt/AFP)

Desdobramentos do encontro em prol de Macri, porém, têm lá suas limitações. “Do ponto de vista internacional, é um feito histórico e pode ser útil para promover o slogan colado ao presidente: ‘Voltamos ao mundo’ ”, avalia o sociólogo Gastón Varesi, da Universidade Nacional de La Plata. Mas a crise é tão profunda que mesmo um evento dessa magnitude não será capaz de tocar no essencial: o descontentamento generalizado. “O argentino médio desconhece os assuntos tratados na cúpula do G20. Ele está muito mais preocupado com a situação econômica do país”, afirma a cientista política Maria Victória López, da Universidade Nacional de Córdoba.

A atual crise econômica, que encontrou o fundo do poço em 2018, é uma das piores da história da Argentina — e olhe que o país é cheio delas. Macri herdou do kirchnerismo um Estado inflado, o gasto público nas alturas e um país que havia se rendido diversas vezes à política de controle artificial de preços. Quando assumiu, ele pôs em prática um pacote que mirava o equilíbrio fiscal, mas, ao passar a faca aqui e ali em subsídios e cargos, viu sua aprovação despencar. Tomou então uma medida para fomentar o consumo interno, baixando as taxas de juros. Isso se revelou um tremendo equívoco: os investidores debandaram.

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Seguiu-se uma brutal desvalorização do peso argentino em comparação com o dólar, de quase 50% desde janeiro. Para conter a escalada, Macri caminhou para o extremo oposto: elevou muito as taxas de juros, atualmente entre as maiores do mundo. A inflação, que já era alta, explodiu: o acumulado deste ano deve ficar em torno de 47%. Foi no auge do desespero que o presidente recorreu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) — sigla, aliás, que revolve memórias ruins de arrocho e pobreza no povo argentino. O total do empréstimo, negociado entre junho e setembro, soma estratosféricos 57 bilhões de dólares.

O acordo com o FMI desanuviou um pouco o horizonte: os investidores comemoraram. Também recentemente, Macri conseguiu aprovar na Câmara dos Deputados e no Senado seu plano orçamentário para 2019, apesar de toda a grita das centrais sindicais descontentes com a tesoura nos gastos públicos. As chances de o presidente permanecer na Casa Rosada residem, em boa parte, no sucesso dessa proposta. “Uma reeleição depende dos rumos da economia no próximo semestre”, analisa o cientista político Jorge Mangonnet, da Universidade Columbia, nos Estados Unidos.

O bloco governista, o Cambiemos, não mostra nenhuma intenção de escolher outro nome em 2019. “Para os políticos da coalizão, Macri ainda tem a melhor imagem e a posição mais favorável na corrida eleitoral”, diz o economista Iván Carrino, da Universidade de Buenos Aires. Isso faz com que, em um ambiente que clama por uma guinada na política, a próxima eleição presidencial tenha como perspectiva zero de novidade. Para confrontar o candidato Macri, o nome mais forte é, vejam só, o de sua antecessora, Cristina Kirchner.

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“O FUTEBOL É POPULAR PORQUE A ESTUPIDEZ É POPULAR”

Torcedores do River Plate
CENAS LAMENTÁVEIS - Torcedores do River presos após o ataque ao ônibus do Boca: futebol no chão (Ivan Pisarenko/AFP)

O presidente da Argentina, Mauricio Macri, que já dirigiu o Boca Juniors, chegou a dizer que preferiria uma final de Libertadores da América entre um clube argentino e um brasileiro, para evitar dor de cabeça. “Já me estresso por causa do meu trabalho, ter ainda de somar o stress de uma final entre Boca e River…”, lamentou. Conhecido o derradeiro duelo do torneio, ele transformou a decisão que fingia não querer em evento político, “uma gigantesca oportunidade para a Argentina voltar a demonstrar seu nível de maturidade”. O primeiro jogo, disputado no estádio La Bombonera, do clube boqueño, terminou empatado em 2 a 2. O segundo, na casa do River, previsto para o sábado 24, não aconteceu — e talvez nunca aconteça. Acabou antes de começar, numa esquina de Buenos Aires onde o ônibus com os jogadores do Boca foi apedrejado. Até gás pimenta foi arremessado contra a delegação. A Confederação Sul-­Americana de Futebol, a Conmebol, remarcou o jogo cancelado para 9 de dezembro, por aí, em algum lugar do mundo, em Madri, no Paraguai, no Catar, nos Estados Unidos, sabe-se lá onde, talvez numa cidade imaginária qualquer de Julio Cortázar. Moral da história: a maturidade argentina celebrada por Macri revelou que anda de cueiros.

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A vergonha do clássico que não houve, o jogo do século, resulta de uma soma da imbecilidade de um grupo de torcedores, da inépcia das autoridades responsáveis pela segurança e da incompetência dos cartolas da Conmebol, que sonhavam em fazer da Libertadores uma réplica da Champions League europeia e caíram no ridículo. Nada muito diferente do que temos no Brasil.

Celebra-se um certo “futebol-raiz”, avesso à modernidade, feito de paixão visceral, romântico, sem as amarras do marketing, mais sujo do que limpo. É uma bobagem. A raiz de tudo, o fundamento, tem um nome: impunidade. É evidente que a questão da segurança nos estádios excede a esfera esportiva. Na Argentina, o futebol está contaminado pela presença de quadrilhas no coração das torcidas organizadas. Para aumentar a temperatura do caos, a Conmebol tem uma postura que só alimenta a esperteza, a contrafação e o crime. Quem deveria controlar as regras do jogo acaba favorecendo a malandragem. No confronto semifinal entre River e Grêmio, o técnico da equipe argentina, Marcelo Gallardo, fez troça da suspensão que havia recebido em outra partida, perdendo o direito de ficar à beira do gramado: falou com seus auxiliares no banco de reservas por um radiocomunicador e foi ao vestiário passar instruções a seus atletas, o que é proibido a quem cumpre punição. No fim do jogo, o técnico comentou o episódio sem pudores, com a empáfia de quem sabe que as transgressões são permitidas. “Não me arrependo de nada”, disse Gallardo. Foi multado em apenas 50 000 dólares e punido com meras três partidas de suspensão. O desfecho é previsível: se o treinador da equipe finalista da Libertadores não se importa com a consequência de seus atos, os torcedores sentem-se autorizados a quebrar ônibus.

Dentro de campo é cada vez maior a discrepância de qualidade do futebol jogado na América do Sul e na Europa. Parece outro esporte. O isolamento é uma decorrência natural. Em 2018, depois da Copa da Rússia, foram realizados apenas três amistosos entre seleções sul-­americanas e europeias. Quatro anos atrás, logo depois do Mundial do Brasil, houve o dobro de partidas no mesmo intervalo de tempo. Existe solução? Sim, e olhar para a história recente é sempre bom. Nos anos 1980, a Inglaterra vivia o mesmo tipo de violência nos estádios. Tudo mudou depois da final da Liga dos Campeões de 1985, quando 39 torcedores morreram antes do jogo entre Liverpool e Juventus. Uma punição exemplar — os times ingleses foram suspensos das competições europeias por cinco anos — e o envolvimento efetivo das autoridades policiais e judiciárias transformaram o futebol inglês no mais organizado do mundo. É caminho improvável ao sul do Equador. Como num labirinto sem saída, não há chance de que o jogo que nunca houve venha a acontecer em condições dignas — e, diante disso, só resta relembrar uma máxima de Jorge Luis Borges (1899-1986), que não via graça alguma em 22 homens correndo atrás de uma bola: “O futebol é popular porque a estupidez é popular”.

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Alexandre Senechal

Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2018, edição nº 2611

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