A primeira grande missão de Kamala Harris
O problema não é simples: achar solução para as multidões de imigrantes que se acumulam na fronteira em busca do sonho americano
Entre os vários ineditismos no currículo de Kamala Harris, de 56 anos, a primeira vice-presidente da história americana, é ser filha de imigrantes: seu pai nasceu na Jamaica e a mãe, na Índia. Os dois estudaram e se formaram nos Estados Unidos, foram bem-sucedidos em suas carreiras e se integraram à vida do país. Em situação bem diversa estão as multidões de estrangeiros com que Harris, agora, terá de lidar: por ordem do presidente Joe Biden, pousou em seu colo a crise dos imigrantes que chegam à fronteira em bandos, ou já estão dentro delas em situação ilegal, com o firme propósito de fazer a vida na América. Nos quatro anos de Donald Trump, o tratamento dado à questão foi curto e grosso: impedir de todas as formas a entrada dos esperançosos, tachados de criminosos e terroristas, e achar meios de deportar os que haviam conseguido entrar. Biden chegou para, ao menos, imprimir uma feição humanitária e civilizada na busca de soluções para o problema — e topou com o caos.
Confiantes na mudança da política imigratória, latino-americanos abarrotam a fronteira com o México e se esgueiram como podem pelas frestas que vão dar no território americano. Em paralelo, projetos de lei para facilitar a vida de quem mora no país ilegalmente não conseguiram sair do papel. É nesse emaranhado que Harris terá de mostrar a que veio. “O nome dela dá destaque à missão de desatar o nó da imigração, mas essa é uma tarefa difícil”, avalia Stephen Yale-Loehr, professor de direito migratório da Universidade Cornell. Segundo dados do governo americano, mais de 100 000 pessoas tentaram cruzar a fronteira com o México em fevereiro. O número inclui 9 500 crianças desacompanhadas, um aumento de 62% em relação a janeiro e o número mais alto desde maio de 2019.
Outro levantamento, do Pew Research Center, contabiliza 18 945 famílias detidas quando tentavam entrar no país entre janeiro e fevereiro. A maioria é devolvida ao México, onde já se acumulam milhares de candidatos a asilo aguardando chamada para a audiência que examinará seu pedido — uma herança da era Trump longe de ser resolvida. Um dos flancos mais importantes no ainda vago plano de ataque de Harris é desenvolver estratégias para interromper o fluxo de migrantes vindos da América Central através da melhoria das condições de vida em seus países. Os Estados Unidos acenam com o investimento de 4 bilhões de dólares na região, ao longo do mandato de Biden, para combater a pobreza e o crime organizado, reforçar governos e ajudar na prevenção de terremotos, furacões e desastres naturais que assolam a América Central. “Mas vai demorar muito tempo para que se consiga estabilizar as economias centro-americanas e criar um ambiente mais seguro, de onde as pessoas não sintam que têm de fugir para salvar sua vida”, diz Yale-Loehr.
Esforços anteriores nesse sentido, incluindo um liderado pelo próprio Biden quando ele era vice-presidente de Barack Obama, não deram em nada. Um programa inaugurado em 2015 injetou 1 bilhão de dólares na América Central, na expectativa de aliviar o fluxo de migrantes, mas os recursos foram inteiramente engolidos pela corrupção local. “A ideia era melhorar a segurança e as condições econômicas. Mas a concepção ficou nas mãos das elites políticas e econômicas, em vez de entidades independentes, e o plano fracassou”, diz Joe Wiltberger, pesquisador do Centro de Estudos Comparativos de Imigração da Universidade do Estado da Califórnia. Desta vez, os Estados Unidos pretendem trabalhar junto com ONGs para distribuir os recursos alocados, mesmo assim com resultados incertos. Nos últimos anos, Guatemala e Honduras expulsaram agências independentes que investigavam desvios nos mais altos escalões do poder local. “O governo adota uma abordagem mais humana, em oposição a Trump, mas o difícil é achar o equilíbrio entre cumprir as leis e projetar solidariedade”, diz o deputado Henry Cuellar, democrata do Texas.
O mesmo Cuellar foi responsável por aprofundar a crise da imigração ao publicar fotos de crianças que cruzaram as fronteiras sem os pais — truque que impede que sejam devolvidas ao México — acomodadas em tendas de plástico feitas para alojar 32, mas com até 400 em “condições terríveis” no Texas. A Casa Branca admitiu que locais assim “não são os que queremos para as crianças” e disse que buscava soluções mais duradouras. Dias depois, o número de menores desacompanhados em instalações na fronteira atingia o ápice, 5 797. Para se ter ideia do tamanho do problema que Harris tem de enfrentar, segundo estimativas do governo obtidas pela CNN, a se manter o ritmo atual haverá 158 000 meninos e meninas sem pais nas acomodações do serviço de imigração até setembro. “Não há dúvida de que é uma situação desafiadora. As pessoas não devem se dirigir à fronteira agora. Temos de cumprir a lei e, ao mesmo tempo, abordar as causas profundas que levam tanta gente a empreender essa jornada”, disse a vice-presidente.
Harris recebeu um briefing extenso sobre a região e vai entrar em contato com líderes centro-americanos e mexicanos nas próximas semanas. A seu favor conta o histórico à frente da Secretaria da Justiça da Califórnia, o estado que mais recebe estrangeiros. No cargo de 2011 a 2016, quando se elegeu senadora, ela cuidou de garantir advogados para as famílias imigrantes necessitadas de assistência, especialmente aquelas com crianças, e viajou várias vezes à fronteira para se encontrar com autoridades locais, criando uma força-tarefa contra grupos criminosos transnacionais — de quebra, ganhou fama de durona com estrangeiros ilegais. Já senadora, a poucas semanas de Trump rescindir uma lei que protegia de deportação quem chegara aos Estados Unidos ainda criança, tendo crescido em solo americano, Harris fez questão de receber alguns desses jovens, os chamados dreamers, em seu gabinete, com petiscos e refrigerantes. Foi ainda uma das signatárias do projeto de lei que proibia sua deportação, combatido a ferro e fogo pelos republicanos.
Ao assumir o Presidência, em janeiro, Biden assinou três decretos executivos destinados a dar o novo tom à questão da imigração. Criou uma força-tarefa para encontrar os pais de crianças separadas deles à força na fronteira, ordenou uma revisão geral das normas impostas pelo governo anterior para restringir os pedidos de asilo e, por fim, determinou uma ampla reformulação dos requisitos legais para a imigração, que, nos últimos quatro anos, foram manipulados para torná-la o mais difícil possível. Nada avançou muito nesses meses de era Biden e os assuntos que exigem aprovação no Congresso vão depender de intensa negociação. É bom Kamala Harris tratar de arregaçar as mangas do terninho.
Publicado em VEJA de 7 de abril de 2021, edição nº 2732