Acomodado na Resolute Desk, a escrivaninha reservada aos atos mais relevantes no Salão Oval, o presidente Joe Biden assinou, na terça-feira 2, três decretos executivos destinados a dar um novo tom, mais humanitário e racional, à controversa questão da imigração. Cumprindo promessas de campanha, Biden, com suas canetadas, criou uma força-tarefa para encontrar os pais de crianças separadas deles à força na fronteira, uma das heranças mais cruéis da era Trump. Também ordenou uma revisão geral das normas impostas pelo governo anterior para restringir os pedidos de asilo e, por fim, determinou uma ampla reformulação dos requisitos legais para a imigração, que, nos últimos quatro anos, foram torcidos para torná-la o mais difícil possível. “Trabalhamos para desfazer a vergonha moral e nacional deixada pelo governo anterior”, declarou Biden.
A proposta realmente abrangente do novo governo em relação à imigração está contida na chamada Lei de Cidadania dos Estados Unidos, um calhamaço já enviado ao Congresso com a intenção de “restaurar a humanidade e os valores americanos no nosso sistema”. O projeto de lei tem como ponto principal o chamado “caminho para a cidadania”, que permite que os quase 11 milhões de imigrantes sem documentos que chegaram antes de 1º de janeiro de 2021 solicitem autorização legal temporária para permanecer no país. Em cinco anos, cumprindo requisitos como verificações de antecedentes e pagamento de impostos, essas pessoas se tornariam elegíveis para o visto de residência, o green card; mais três anos e poderiam ter cidadania plena. Aos 2,1 milhões de dreamers — aqueles que imigraram ainda crianças e não conhecem outra vida — é dado o direito de solicitar o green card imediatamente. “Não se trata exatamente de abrir a porteira. Mas passa a mensagem de que vamos conceder direitos legais básicos e ser respeitosos com imigrantes”, afirma Erin Corcoran, diretora do Instituto Kroc de Estudos Internacionais de Paz, da Universidade Notre Dame.
Direitos e respeito foram dois conceitos amplamente ignorados pelo governo Trump, que implantou mais de 400 ações destinadas a restringir a permanência de estrangeiros no país. Por mais que favoreça mudanças, no entanto, nada vai ser alterado imediatamente no governo Biden. No caso das no mínimo 628 crianças separadas dos pais, a força-tarefa tem quatro meses para apresentar o primeiro relatório. A agilização dos pedidos de asilo, que afeta a multidão de esperançosos amontoados em acampamentos do lado mexicano da fronteira, depende de medidas sanitárias contra a Covid-19 e de um plano para acomodar recém-chegados em grande escala — ou seja, não é para já. Esse ritmo cauteloso tem também por objetivo desestimular novas caravanas, que já percorrem a América Central, em direção ao México.
O projeto de lei encaminhado ao Congresso tropeça na má vontade dos parlamentares. Vindos de estados com alto desemprego e rancor dos locais pelos estrangeiros que invadem sua cultura, muitos, inclusive do lado democrata, têm sérias restrições à Lei de Cidadania de Biden. Antes de levar a proposta ao plenário, o governo vai bater na tecla das vantagens econômicas e sociais da imigração. Segundo estudo das Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina, a presença de estrangeiros economicamente ativos nos Estados Unidos é cada vez mais imprescindível. Entre 2010 e 2020, o país teve o crescimento populacional mais lento de sua história. Ao mesmo tempo, os baby boomers envelheceram, elevando gastos com a previdência social e programas de saúde. “O país vai precisar de mais adultos em idade produtiva para pagar por isso, e a renovação ficará por conta dos imigrantes”, aponta Nancy Foner, socióloga da City University of New York. Será a ironia das ironias: uma força de trabalho não branca pagando os impostos que sustentarão os americanos da gema.
Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724