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A menina da foto: a história por trás de um símbolo da Guerra do Vietnã

Aos 55 anos, Kim Phuc Phan Thi conta sua trajetória depois do ataque químico que a deixou com cicatrizes por todo o corpo

Por Julia Braun Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 20h08 - Publicado em 29 set 2018, 08h30

Uma imagem marca a Guerra do Vietnã desde  1972. Com os braços abertos, o corpo nu queimado e a expressão de terror no rosto, uma menina atingida por uma bomba química se tornou o símbolo do conflito que matou mais de 2 milhões de vietnamitas, muitos deles civis, e 58.000 militares americanos.

A menina da foto é Kim Phuc Phan Thi. Aos 9 anos, ela teve grande parte das costas, da nuca e do braço esquerdo queimados por uma substância química chamada napalm. O ataque que a atingiu foi comandado pelas forças do Vietnã do Sul, apoiadas pelos Estados Unidos, contra a vila de Trang Bang, na época ocupada pelas tropas norte-vietnamitas.

Hoje, vive no Canadá ao lado de seus filhos, de seu marido e de seus pais. Em visita ao Brasil, 46 anos depois daquela tragédia, para lançar sua autobiografia “A menina da foto – Minhas memórias: Do horror da guerra ao caminho da paz”, Kim revelou que após anos de sofrimento e de ódio, encontrou finalmente a paz. Esta mãe de dois filhos percebeu que poderia usar sua foto para impulsionar uma campanha contra a violência.

“Quando criança, eu desejava que aquela foto nunca tivesse sido tirada. Até que eu me tornei mãe e segurei meu filho em meus braços pela primeira vez”, afirmou Kim a VEJA. Percebi que a imagem era um presente poderoso com o qual poderia trabalhar para alcançar a paz”, diz.

“Nenhuma criança deveria sofrer como eu sofri”, afirma a vietnamita, que hoje tem 55 anos e comanda uma organização de auxílio a crianças em áreas de conflito. “Naquele momento, eu estava no lugar errado e na hora errada. Mas agora estou no lugar certo e na hora certa. Eu encontrei meu propósito. ”

Kim Phuc Phan Thi, vítima de um ataque aéreo de napalm durante a Guerra do Vietnã em 1972 (Heitor Feitosa/VEJA.com)

A história por trás da foto

Em junho de 1972, após Trang Bang ser invadida pelos vietcongues – como ficaram conhecidos os soldados que lutavam ao lado do Vietnã do Norte –, a família de Kim se abrigou em um templo religioso próximo a sua casa. No dia 8, os sul-vietnamitas lançaram um grande ataque contra a vila, e todos que se refugiavam no local tiveram que fugir às pressas.

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A menina, seus primos e irmãos correram em direção a uma grande estrada que cortava o vilarejo, chamada Rodovia 1. Foi bem ali que os aviões militares sul-vietnamitas derrubaram as bombas de napalm, supostamente esperando atingir as tropas inimigas.

“Nós ouvimos os soldados gritando que tínhamos de correr o mais rápido que podíamos”, conta Kim. “Quando entrei na Rodovia 1, vi os aviões voando em minha direção, fazendo muito barulho. Pensei que deveria correr, mas estava congelada”.

“Naquele momento, vi com meus próprios olhos quatro bombas caindo e, em seguida, o fogo ao meu redor”, relata. “O fogo destruiu todas as minhas roupas, por isso fiquei tão queimada nas costas, na nuca e no braço esquerdo. ”

A menina usou a mão direita para tentar tirar a substância inflamável do braço e acabou queimando também seu outro lado. Kim lembra-se que, naquele momento, estava muito assustada e com medo. Passou a correr do fogo, em direção aos seus irmãos e primos, ao lado de alguns soldados.

Esta foi a imagem que o fotógrafo Nick Ut, da agência Associated Press, capturou com a sua câmera, montada estrategicamente na estrada.

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Aquela imagem foi uma das muitas que Ut tirou daquele conflito, embora esta tenha sido a que marcou sua carreira e ainda lhe rendeu o prêmio Pulitzer. Ao lado esquerdo de Kim, na foto, estão dois de seus irmãos e, ao lado direito, dois primos.

Em 2005, Kim e seus familiares reconstituíram a foto de 8 de junho de 1972. Um dos irmãos da vietnamita morreu poucos dias antes da fotografia mais recente ser tirada (Nick Ut/AP/Arquivo pessoal)

“Nós continuamos correndo, chorando e gritando, mas fiquei tão cansada que tive que parar”, conta Kim. Em desespero, ela gritava “muito quente, muito quente! ”, enquanto sentia o napalm grudar e devorar sua pele.

Um dos jornalistas que acompanhava a cena deu algo para a menina beber e jogou água em suas costas, fazendo-a perder a consciência. Sem saber, ele acabou piorando seus ferimentos, já que a reação da substância química com o oxigênio queimou ainda mais profundamente a pele de Kim. Com a ajuda de um médico conhecido, ela foi realocada em uma instalação para vítimas de queimaduras.

Ao perceber que a situação se agravara, Nick Ut pegou as crianças feridas no colo, as colocou em sua van, e arrancou para o hospital mais próximo. A menina chegou em estado crítico ao centro, e os médicos, sem muitos recursos, a consideraram morta. A jovem foi diretamente enviada ao necrotério, onde passou três dias até sua mãe encontrá-la.

“Havia um menino deitado na cama ao lado. Suas feridas demoraram tanto para serem tratadas, que vermes agora se refestelavam em sua carne. Tempos depois, mamãe me contou que alguns daqueles vermes haviam encontrado minha cama e chegado ao meu rosto e meus órgãos internos, que estavam expostos”, descreveu ela no livro. “Minha pele começava a apodrecer, enchendo o ar com um cheiro metálico repugnante.”

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Com a ajuda de um médico conhecido, ela foi realocada em uma instalação para vítimas de queimaduras. Nesse local, a garota ficou internada durante 14 meses e passou por 16 cirurgias – realizou a 17ª na Alemanha, aos 21 anos. Em sua autobiografia, ela descreve toda a dor e o sofrimento que enfrentou, especialmente nos banhos diários para tratar as queimaduras.

“As dolorosas pontadas que eu sentia nessas ocasiões eram tão insuportáveis que, quase todas as manhãs, eu desmaiava momentos antes de ser colocada na banheira”, relatou.

As queimaduras de terceiro e quarto grau destruíram todas as três camadas de pele de Kim, assim como alguns músculos e ligamentos. A menina ficou em condição crítica por cerca de 40 dias, e a Kim de hoje sofre com dores fortes nas costas e no braço.

Kim só viu a imagem que marcaria sua vida quando voltou para casa. “Só conseguia pensar que estava feia, não entendia porque o fotógrafo havia tirado aquela foto quando eu estava pelada, com o rosto tão feio”, diz.

Na mesma época, reencontrou Nick Ut, que foi até sua casa acompanhar seu progresso com as queimaduras. “Ele se tornou parte da minha família”, conta ela, que ainda hoje se refere ao fotógrafo que salvou sua vida como “tio Ut”.

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No dia do bombardeio, pouco antes dos aviões chegarem à vila, Kim brincava com um de seus primos favoritos, Danh, de 3 anos. Durante a fuga para o templo, o menino foi carregado por um soldado que ajudava a família a escapar do ataque. Assim que o napalm atingiu as roupas pesadas do oficial, ele e o garoto tiveram seus corpos envolvidos em chamas até a morte.

Os anos após o ataque foram terríveis para Kim. “Sai do hospital, mas minha vida parecia que estava começando de novo”, lamenta. “Eu sofri muito, mas não só com as queimaduras. Passei por traumas, tinha pesadelos, baixa auto-estima, muito ódio e amargura. ”

Propaganda do regime comunista

Aos 19 anos, Kim entrou na universidade para realizar seu sonho de cursar Medicina. A jovem, contudo, logo teve de abandonar seus planos quando o regime comunista descobriu seu paradeiro e passou a usá-la como garota propaganda de sua ideologia.

Após o fim da guerra e a vitória dos norte-vietnamitas, em 1975, o Vietnã passou a ser controlado por um governo comunista. Cientes da fama de Kim Phuc, o regime passou a convocá-la para uma série de entrevistas e aparições públicas, que prejudicaram por várias vezes seus projetos educacionais.

Em 1986, aos 23 anos, Kim finalmente conseguiu permissão para estudar fora do país. Os oficiais do regime a autorizaram a viver em Cuba, sob o domínio de outro governo comunista.

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Mesmo longe de casa, a jovem não conseguiu concluir os estudos. “Eu me tornei uma prisioneira daquela guerra política, eu não tinha liberdade nem escolha, tinha de seguir o que eles queriam que eu fosse”, conta.

Porém, em 1992, Kim conheceu seu marido, Toan, um norte-vietnamita que também morava em Cuba. Após o casamento, os dois passaram a lua de mel na Rússia e no regresso, em uma escala no Canadá, decidiram desertar e pedir refúgio no país. Em Toronto, o casal construiu sua vida em comum.

Apesar de todos os avisos dos médicos vietnamitas, a mulher conseguiu, com a ajuda de especialistas canadenses, engravidar duas vezes. Os dois meninos nasceram saudáveis e, segundo Kim, deram um novo sentido a sua vida.

“Meu sonho, quando cheguei ao Canadá, era escapar daquela foto. Eu queria ser normal, voltar a estudar, ter um emprego”, conta. “Quando meu primeiro filho nasceu, aquela foto me desafiou e se tornou um presente”.

Hoje, Kim afirma não desejar mais voltar a viver no Vietnã. “Mas meu sonho é que meu povo não sofra mais como eu sofri, não só com a guerra, mas também com a pobreza”, diz. “Muitas coisas ainda precisam ser feitas, mas tenho visto progresso nos últimos anos”.

As cicatrizes de Kim Phuc Phan Thi aos 22 anos (Foto/Divulgação)

Religiosidade e perdão

Kim cresceu e foi educada por sua família no Caodaísmo, religião fundada no Vietnã. Aos 19 anos, quando ainda morava no país, converteu-se ao Cristianismo.

Segundo ela, foi por meio de sua nova religião que encontrou a paz e seu propósito de vida. Hoje, Kim é embaixadora da boa vontade da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e comanda sua própria organização não-governamental para o auxílio a crianças atingidas pela guerra.

A KIM Foundation International fornece tratamento e próteses para menores feridos em conflitos e patrocina a construção e a manutenção de hospitais, escolas e orfanatos em vários lugares do mundo. “Não quero mais ver outras Kims sofrendo como eu sofri”, diz.

A vietnamita também encontrou nas orações uma forma de perdoar todos aqueles que lhe fizeram mal. Em 1996, em uma cerimônia do Dia dos Veteranos de Guerra em Washington (DC), nos Estados Unidos, Kim encontrou-se com John Plummer, um dos oficiais americanos que comandou o ataque com napalm contra Trang Bang.

O militar, que se transformou em pastor, pediu o perdão da mulher que havia ferido 24 anos antes. “Está tudo bem. Eu o perdoo”, respondeu Kim.

Kim Phuc Phan Thi com seu filho Thomas (Anne Bayin/Divulgação)

“Eu tinha muita raiva antes, até de mim mesma pelas minhas cicatrizes e por toda a dor que sentia”, disse a VEJA. “Quando aprendi a amar e perdoar meus inimigos, meu coração se libertou de todo o ódio”.

Segundo Kim Phuc, aprender a perdoar a ajudou a levar uma vida mais leve. “Eu ainda sofro com dores todos os dias, e isso é um grande desafio para mim. Mas descobri como tornar essa dor minha amiga”, conta. “Não me foco no sofrimento, distraio a minha mente conversando, cantando uma música e rezando”, completa.

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