Foi no século XIX que as peles de animais, além de servirem como matéria-prima de roupas para o inverno, consolidaram-se como símbolo de status e luxo no Ocidente. Por serem raras e exigir habilidades específicas para ser processadas, seu valor era muito alto. Depois de tremendo sucesso, elas andaram meio esquecidas no fim do século XX, mas acabaram ressurgindo nas passarelas de moda a ponto de se tornarem itens obrigatórios nos closets dos novos ricos chineses. O renascimento, porém, parece estar com os dias contados. Pressionadas por campanhas de proteção aos bichos, hoje criados com o único objetivo de serem esfolados, muitas grifes abandonaram a produção dessas peças. Mais recente sócia de um clube que passa de cem marcas, a Valentino anunciou na semana passada sua decisão de bani-las de suas criações a partir de 2022. É o fim de uma era.
Em 2021, a etiqueta italiana havia se tornado a primeira marca de luxo a deixar de usar a lã de alpaca — segunda matéria-prima de maior impacto no meio ambiente depois da seda. Agora, abandonará as peles, seguindo os passos de Calvin Klein, Chanel, Giorgio Armani, Gucci, Jean Paul Gaultier, Ralph Lauren, Prada e Versace. Em um comunicado público emitido há poucos dias, o CEO Jacopo Venturini disse que o conceito fur-free (livre de peles) está perfeitamente alinhado aos valores da empresa. “Estamos avançando rapidamente na busca por diferentes materiais e empenhados em dar maior atenção ao meio ambiente nos próximos anos”, promete ele. A coleção outono-inverno 2021/2022 será a última com produtos dessa natureza.
A organização internacional Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais, mais conhecida pelo acrônimo em inglês Peta, credita o movimento da Valentino às suas ações de bastidores e a seus ruidosos protestos — ocasionalmente invadindo desfiles ou promovendo manifestações teatrais diante das sedes das marcas. Divulgado um dia depois do anúncio da grife, um comunicado da Peta comemorou a decisão dos italianos e arriscou uma projeção: “Nesse ritmo, no próximo ano nenhum designer estará vendendo roupas de peles. E não é de admirar, já que nenhum comprador consciente iria comprá-las”. Apesar de ser fortemente contestada e estar em queda, a indústria de peles conta com lobistas poderosos.
Estudos sobre o setor mostram que, desde a década de 90, a relação entre peles de animais e moda atravessou transformações radicais. Nesse período, as peles passaram por uma profunda recauchutagem para se tornar compatíveis com marcas de luxo e de massa. Novos mercados foram desenvolvidos no Leste Asiático, tendo a China, que cresceu economicamente e ganhou grande poder aquisitivo, como o principal deles. Na ponta produtiva, a Dinamarca ocupava o posto de maior exportadora de peles do mundo: 97% dos visons (animal mais usado nas roupas) criados em suas fazendas eram vendidos principalmente para os chineses. Tudo caminhava de vento em popa até a pandemia de Covid-19, quando o coronavírus se espalhou pelos criadouros dinamarqueses, obrigando o governo a decretar o sacrifício de 17 milhões de animais no fim do ano passado.
Uma pesquisa feita pela revista especializada em negócios na moda Vogue Business e pelo instituto Dynata entre consumidores de alta renda chineses dá a dimensão da indiferença deles com a questão ecológica. Segundo o estudo, 75% dos entrevistados não veem problemas em usar roupas de pele e apenas os 25% restantes acham impróprio. “Eles são movidos mais pela ostentação do que por qualquer outra razão”, diz a estilista e empresária brasileira Ana Paula Tieko, que tem uma empresa de consultoria em Guangzhou. “A boa notícia é que as tecnologias de peles sintéticas estão melhorando, o que as deixa mais duráveis e mais baratas.” Com isso, ativistas pelos direitos dos animais esperam que a demanda por itens como coletes de 16 000 dólares e casacos de pele de 60 000 dólares desapareça. Os bichos — e o planeta — agradecem.
Publicado em VEJA de 02 de junho de 2021, edição nº 2740