As chagas abertas pelo Hamas nos ataques terroristas de 7 de outubro ainda são visíveis na porção sul de Israel, na área próxima à Faixa de Gaza. Em Sderot, cidade que fica a apenas 1 quilômetro do front, as marcas da invasão do grupo extremista estão por toda parte. Ainda se encontram manchas de sangue no asfalto e fachadas inteiras metralhadas. A delegacia de polícia que foi ocupada pelos agressores, e de onde os atiradores de elite alcançavam os civis israelenses que buscavam proteção na polícia, paira silenciosamente como retrato de uma tragédia da civilização, símbolo do horror.
A psicóloga Ayelet Shmuel, 50 anos, uma das poucas pessoas que ainda permanecem no perímetro urbano (leia outros depoimentos ao longo desta reportagem), lembra com espanto o que houve. “O ataque só parou quando o Exército explodiu o prédio”, diz. “Havia muitos corpos espalhados.” A maioria dos 30 000 moradores se mudou para hotéis bancados pelo governo, longe das zonas de combate, onde devem ficar até alguma normalidade possível. No total, 300 000 cidadãos de Israel tiveram de deixar suas casas por correrem risco de ser atingidos por foguetes disparados pelo inimigo. Em Sderot, os moradores têm apenas quinze segundos para entrar em um dos muitos bunkers disponíveis quando escutam a sirene que antecede os ataques.
Durante quinze dias, a reportagem de VEJA percorreu Israel, de modo a sentir as feridas — as aparentes e as psicológicas — de uma nação traumatizada. Acompanhou de perto os pesares causados pelas mortes de 1 200 israelenses e de 15 000 palestinos, no contra-ataque. Na última semana, o país passou a conviver também com a angústia de não saber quais serão os próximos passos da guerra, assim que o cessar-fogo, iniciado em 23 de novembro, for página virada.
A trégua trouxe um momentâneo e providencial alívio aos dois lados da trincheira, ao permitir a entrada de ajuda humanitária em Gaza e a libertação de 89 reféns que estavam em poder do Hamas, em troca da libertação de 267 palestinos detidos em Israel. A comunidade internacional pressiona para que o prazo da suspensão do conflito, previsto para durar até o dia 1º de dezembro, seja estendido. Ninguém acredita, contudo, haver paz duradoura em horizonte próximo. “Essa é uma batalha pelo futuro da nossa existência”, diz o major do Exército, Rafael Rozenszajn, instalado em uma base militar de Tel Aviv.
Em novo capítulo do conflito, as tropas do chamado Exército de Defesa estão prontas para retomar a ofensiva. Os israelenses creem não enfrentar crise de tamanha gravidade desde as Guerras dos Seis Dias, em 1967, e do Yom Kippur, em 1973, duas ocasiões em que o país expandiu seu território. É disseminada a certeza de que não haverá conciliação enquanto o Hamas seguir influente em Gaza. O grupo terrorista ainda é capaz de lançar foguetes e mantém 150 pessoas em cativeiro, o que deve dificultar futuras pausas humanitárias. A eliminação completa da facção é a condição imposta por partidos de extrema direita para seguir apoiando o premiê Benjamin Netanyahu. “Parar a guerra é igual a quebrar o governo”, declarou Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional e representante da corrente radical que foi alçada ao poder depois da aliança com o mais longevo líder sionista. Fervorosa defensora de colonos judeus que ocuparam territórios destinados aos palestinos na Cisjordânia, a coalizão se opõe a qualquer tentativa de pacificação. “Eles apostam na escalada de violência para semear o caos e, assim, atrair mais intervenção militar”, diz João Miragaya, historiador da Universidade de Tel Aviv. “O objetivo dessa turma é afastar qualquer possibilidade de negociação para a criação de um futuro Estado palestino”. É, de fato, hoje, sonho inalcançável.
A interrupção das bombas pode mudar o ambiente e a postura da população, uníssona depois da barbárie. As antigas diferenças políticas que haviam ficado adormecidas diante dos ataques de outubro voltaram a aparecer em protestos contra o governo de Netanyahu, embora tímidos. “Podemos esperar uma eleição em breve e é provável que tenhamos uma mudança de direção”, diz André Lajst, cientista político e presidente da ONG StandWithUs Brasil, que acompanha de perto a situação no país. Alimentar o conflito, contudo, passou a ser questão de sobrevivência política para o atual mandatário. As taxas de confiança no premiê despencaram para 4% desde as agressões, segundo pesquisa da Universidade Bar-Ilan. E mais: 57% dos eleitores dizem estar dispostos a votar em Benny Gantz, membro moderado do gabinete de guerra, se o Parlamento fosse dissolvido. Apesar das resistências internas, o atual governo tem sido pressionado pelos Estados Unidos, o mais fiel aliado de Israel, a trabalhar em uma solução de longo prazo na região, já que a insistência no embate tem grandes chances de seguir estimulando o radicalismo islâmico — ainda que sob outra liderança, não a do Hamas.
O caminho de futuro, desenhado desde a fundação da nação judaica, em 1948, é a criação de dois Estados. Embora racional e apoiada pelo Conselho de Segurança da ONU, a saída esbarra em um enorme problema de ordem prática: não há liderança capaz de convencer os dois lados a negociar. Para piorar o impasse, a Autoridade Palestina (AP), instituição que surgiu após os acordos de Oslo, em 1993, para garantir a ordem na Cisjordânia, é vista como corrupta e inoperante pela população árabe. Um levantamento do Centro Palestino de Política e Pesquisa revela que dois terços consideram a entidade um fardo e 85% defendem a renúncia de Mahmoud Abbas, 88, que governa há dezoito anos. “A atual crise escancarou a incapacidade de liderança da AP”, diz Grant Rumley, especialista em Oriente Médio do Washington Institute.
Guardadas as devidas ressalvas, as ruas de Jerusalém, onde judeus, muçulmanos e católicos convivem a poucos metros da fronteira com a Cisjordânia, antecipam o clima que poderia se instalar em Gaza caso a ocupação de Israel se estenda por período indeterminado. A ostensiva presença de militares do Exército sionista se faz sentir até dentro da Cidade Antiga, onde estão o Muro das Lamentações, a Igreja do Santo Sepulcro e a Mesquita de Al-Aqsa. Os postos de controle espalhados por todo canto, no entanto, não foram suficientes para impedir a ocorrência de dois atentados recentes, o último deles na quinta 30, que resultou na morte de três pessoas em ataque assumido pelo Hamas.
O medo e a insegurança fizeram o turismo, principal atividade da região, minguar. Em Belém, 20 quilômetros ao sul, no território palestino da Cisjordânia, a igreja da Natividade, erguida sobre o local onde Jesus Cristo teria nascido, está às moscas. As festividades de Natal, que atraem peregrinos do mundo inteiro, foram canceladas. “Não vendo nada há cinquenta dias”, lamenta Victor Batar, 70 anos, dono de uma loja de suvenires. Ao menos 200 000 palestinos que atravessavam os check points todos os dias para trabalhar tiveram a licença suspensa, atalho para protestos semanais, em cidades como Hebron.
A paralisia, é natural, impõe impactos econômicos. Enquanto Israel desembolsou exorbitantes 50 bilhões de dólares para custear sua ofensiva, 700 000 cidadãos perderam o emprego. Uma das áreas mais afetadas é o robusto setor de tecnologia. As startups, responsáveis por empregar 10% da mão de obra e pagar os melhores salários, foram afetadas em cheio pela convocação de reservistas para lutar nas frentes de batalha. Investidores internacionais suspenderam seus aportes, temerosos em alocar dinheiro num país em guerra sem data para acabar. “Agora, contrata-se muito menos, e por salários até 25% inferiores aos de apenas um ano atrás”, afirma Hayim Makabee, conselheiro de cinco empresas de tecnologia.
A freada é resultado do receio do que pode acontecer em Gaza e do futuro turvado da ideia de dois Estados. Soma-se a esse par de incômodos um outro temor, ao norte. A próspera região, onde se concentram food techs e estâncias turísticas, sofre com outra frente de batalha na fronteira com o Líbano, onde as tropas israelenses combatem os terroristas do Hezbollah. A pequena e agradável Kiryat Shmona, cidade encravada nas montanhas, a 1,9 quilômetro da linha que separa os dois países, é alvo de foguetes do grupo financiado pelo Irã. Praticamente todos os 20 000 habitantes se mudaram. Só quem se recusou a deixar seu posto foi o prefeito. “É muito difícil não ter prazo para voltar para casa”, diz Yonatan Corinaldi, 50 anos, que há quase dois meses mora em hotel com a família. “Todos estão em segurança, menos meu filho, que foi convocado.”
Teme-se que aquele canto de Israel possa ser palco do início de um conflito regional. Ainda não, mas a falta de perspectiva de uma solução pacífica sugere muita dor antes de alguma tranquilidade. A trégua pareceu esperançosa, mas talvez tenha sido apenas o triste interregno de um equilíbrio frágil, muito frágil.
Publicado em VEJA de 1º de dezembro de 2023, edição nº 2870