Eu me pergunto várias vezes como deixei a coisa chegar a esse ponto. É difícil responder. A gente cansa de ouvir histórias de mulheres que apanham do marido e dizem que tropeçaram no tapete. Não me enxergava como uma delas. Mas foi assim que eu agi durante muito tempo. Quando você está passando por uma brutalidade dessas, nega até para si mesma. Só que a situação alcançou um ponto intolerável nesta quarentena. Comecei a temer pela minha vida. Nas últimas semanas, Hazem Roshdi, nascido no Egito, e com quem estava casada havia seis anos, tornou-se cada vez mais agressivo, fazendo-me ameaças e se descontrolando. Ele não respeitava o isolamento e dizia: “Não sou velho para ficar em casa”. Numa das vezes em que saiu, reclamei. Argumentei que daquela forma estava me expondo por eu ser do grupo de risco, com mais de 60 anos e cardíaca.
Foi o estopim. Ele chutou o ventilador e meu computador, gritava que ia quebrar a televisão, rasgar minha cara e botar fogo no apartamento. Entrei em pânico. Em meio àquele desespero, aproveitei um momento de distração dele e mandei uma mensagem para a amiga Luiza Brunet — engajada na causa desde que ela própria foi vítima de violência doméstica. Luiza sabia que eu vinha sendo agredida física e psicologicamente. Escrevi apenas: “SOS”. Era o código que tínhamos combinado para que ela chamasse a polícia no caso de haver um problema. Quando o porteiro do flat tocou o interfone, fingi que era uma entrega da farmácia. Ao ver os policiais, só consegui dizer “pelo amor de Deus, me ajudem” — e desabei a chorar.
Eu me casei com Hazem no Egito, em agosto de 2014, oito meses depois de começarmos a nos falar pela internet. Viajei para conhecê-lo e, antes de decidir vir comigo para o Brasil, ele quis oficializar a união. Por mim, nem me casaria, mas Hazem insistiu, alegando que as regras em seu país eram diferentes. Contava que trabalhava como segurança. Não me importei em sustentá-lo aqui. Tive outros cinco casamentos e por mais de uma vez eu mantive a casa. O problema surgiu com o tempo, quando ele, que hoje está com 35 anos, foi se mostrando outra pessoa.
A violência doméstica escalava. Um dia, por causa de uma discussão boba, Hazem puxou o colchão da cama com tanta força que caí no chão. Logo depois, veio para cima de mim com um travesseiro. Umas quatro vezes fui acordada com socos nas costas. Ele também me fazia intimidações, como quando usava a força para impedir que eu saísse do quarto, e me xingava de tudo. Eu já havia dito que o casamento estava acabado, que queria me separar, mas Hazem não ligava. Em 2017, ele me jogou no chão por causa de uma discussão sobre o cachorro que tínhamos. Bati com a cabeça e perdi os sentidos. Quando recobrei a consciência, vi que escorria sangue pelo meu supercílio. Hazem disse que eu caíra sozinha e chegou a pegar gelo. Mas fui a um hospital, contei a história verdadeira e me orientaram a dar queixa na polícia. Fiz isso, ele foi embora para o Egito, porém acabou voltando. Disse que tinha mudado, que não vivia sem mim, e eu perdoei. Agora, chega.
Depois de prestarmos depoimento na delegacia, Hazem foi levado pelos policiais ao meu apartamento para pegar todos os seus pertences. Ainda estou assustada e com muito medo. Não tenho dormido direito, só choro. Nos últimos dias, ele tentou me ligar e me enviou mensagens de perfis diferentes nas redes sociais, mas consegui uma medida protetiva, pela qual Hazem não pode mais se aproximar de mim nem da minha casa. Depois de tudo, mesmo sabendo que sou a vítima, fica a vergonha de não ter tomado uma atitude antes. O que eu posso dizer hoje a mulheres em situação semelhante é que não deixem chegar a esse ponto.
Depoimento dado a Sofia Cerqueira
Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685