Ronaldinho Gaúcho não tem o hábito de expor detalhes de sua agitada vida privada e em raras oportunidades comentou sobre os dramas familiares vividos na infância. Nesta quarta-feira, no entanto, o craque brasileiro, que negocia com o Nacional do Uruguai para retornar ao futebol profissional, escreveu uma carta no The Players Tribune, site americano no qual estrelas do esporte mundial expressam seus sentimentos e planos, e revelou como recebeu a notícia da morte de seu pai.
João Moreira, o pai do craque, morreu ao cair em uma piscina, quando Ronaldinho tinha apenas oito anos de idade. Foi o irmão mais velho e hoje empresário, Roberto de Assis, quem deu a notícia ao futuro craque. Em carta endereçada a si próprio, Ronaldinho falou sobre a perda de seu maior incentivador. “O papai é quem dizia para você para usar e abusar da sua criatividade em campo; é ele quem dizia para você fazer o jogo bonito, para você apenas brincar com a bola” diz, a si mesmo, Ronaldinho em um dos trechos.
Em sua mensagem, Ronaldinho também recorda a evolução de sua carreira, o auge no Barcelona, e seu papel nos primeiros anos do argentino Lionel Messi no clube catalão. O brasileiro, sete anos mais velho, repetiu os conselhos de seu pai ao pupilo argentino. “Eu quero que você jogue com alegria. Jogue com liberdade. Apenas brinque com a bola nos pés.”
Leia, abaixo, a carta de Ronaldinho Gaúcho na íntegra.
Caro Ronaldinho de 8 anos de idade,
Amanhã, quando você voltar para casa depois de ter jogado futebol, vai ter muita gente em sua casa. Seus tios, amigos da família e algumas pessoas que você não vai reconhecer estarão na cozinha. A princípio, você pensará que se trata de uma festa. Todos estarão lá para comemorar os 18 anos de seu irmão, Roberto.
Geralmente, quando você volta para casa depois do futebol, sua mãe está sempre rindo ou fazendo algum tipo de piada.
Mas desta vez ela estará chorando.
Então, você vai ver Roberto. Ele colocará o braço em volta dos teus ombros e vai te levar para o banheiro para que vocês possam estar num local mais reservado. Ele vai te contar algo que você não irá compreender.
“Houve um acidente. Papai se foi. Ele morreu”
Essa notícia não fará sentido para você. O que isso quer dizer? Quando é que o papai volta? Como é que ele pode ter ido embora?
O papai é quem dizia para você para usar e abusar da sua criatividade em campo; é ele quem dizia para você fazer o jogo bonito – para você apenas brincar com a bola. Ele acreditou em você mais do que qualquer outra pessoa. Quando Roberto começou a jogar profissionalmente pelo Grêmio no ano passado, o papai disse: “Roberto é muito bom, mas prestem atenção no irmão mais novo dele”.
O papai foi um super-herói. Ele gostava tanto de futebol que, mesmo depois de trabalhar durante a semana, ele ainda trabalharia na segurança do estádio do Grêmio nos finais de semana. Como é que você jamais o encontraria novamente? Você não entenderá o que seu irmão Roberto está contando para você.
Você não ficará triste imediatamente. A tristeza virá com o tempo. Daqui a alguns anos, você aceitará que o papai jamais retornará à terra. Mas o que eu quero que você entenda é que, todas as vezes que você estiver com a bola nos pés, papai estará com você.
Quando você tem uma bola de futebol aos seus pés, você está livre. Você está feliz. É quase como se você estivesse ouvindo música. É aquela sensação que faz você querer espalhar alegria para os outros.
Você tem sorte porque você tem Roberto. Mesmo que ele seja dez anos mais velho que você, ainda que ele já esteja jogando pelo Grêmio como profissional, Roberto estará sempre ao seu lado. Ele não será apenas seu irmão, ele será como um pai para você. E mais do que isso: ele será seu herói.
Você vai querer jogar como ele, você vai querer falar como ele. Todas as manhãs, quando você estiver a caminho do Grêmio – você jogando com os atletas mais jovens; ele jogando com o time profissional – você irá para o vestiário com o seu irmão mais velho, uma estrela do futebol. E todas as noites, quando você for dormir, você pensará: eu posso dividir o quarto com o meu ídolo
Não existem pôsteres no quarto que vocês dividem, apenas um aparelho simples de TV. Não faz diferença porque vocês não terão tempo para assistir a nenhum jogo juntos. Quando Roberto não estiver viajando para jogar pelo Grêmio, ele está levando você por aí para jogar mais futebol.
Nas imediações onde você mora, em Porto Alegre, existe tráfico de drogas e criminalidade e todo esse tipo de coisa. Vai ser difícil, mas enquanto você estiver jogando futebol – nas ruas, no parque, com seu cachorro – você se sentirá seguro.
Sim, eu disse isso mesmo: seu cachorro. Ele será um defensor incansável.
Você jogará com Roberto. Você jogará com outros garotos e com rapazes mais velhos no parque. Mas, eventualmente, todo mundo ficará cansado – e você vai querer continuar jogando. Portanto, sempre leve seu cachorro, Bombom, junto com você. Bombom é um vira-lata. Um típico cachorro do Brasil. E no Brasil até mesmo os cachorros gostam de futebol. Bombom será perfeito para praticar os dribles e para colocar em prática seu estilo… e talvez Bombom seja a primeira vítima de um dos seus famosos elásticos.
Daqui a alguns anos, quando você estiver jogando na Europa, alguns defensores farão você se lembrar de Bombom.
A infância será bem diferente para você. Quando você tiver 13 anos, as pessoas começarão a falar de você. Eles vão falar a respeito da sua técnica e do que você é capaz de fazer com a bola nos pés. Nesse momento, o futebol ainda é apenas jogo para você. Mas em 1994, quando você estiver com 14 anos, a Copa do Mundo de 1994 mostrará que o futebol é mais do que simples jogo.
O dia 17 de julho de 1994 é uma data que todos os brasileiros se lembram. Nesse dia, você estará em viagem com a equipe juvenil do Grêmio para uma partida em Belo Horizonte. A final da Copa do Mundo estará sendo exibida na TV, e será Brasil contra Itália. Sim, é isso mesmo, a Canarinho estará na final pela primeira vez em 24 anos. O país inteiro parece parar para assistir.
Em Belo Horizonte, em todos os lugares há bandeiras do Brasil. Não existem outras cores que não sejam o azul, o verde e o amarelo naquele dia. Em todos os cantos da cidade haverá uma TV ligada com muitas pessoas assistindo ao jogo.
Você vai assistir ao jogo com os seus colegas de equipe. O apito final vai soar com o placar empatado em 0 a 0. O jogo irá para a cobrança de pênaltis.
A Itália vai perder a primeira cobrança, assim como o Brasil não vai acertar seu primeiro pênalti. Então… Romário se apresenta. A cobrança dele segue para o lado esquerdo… bate na trave…. e então encontra as redes. Os caras do time estão empolgados, gritando e berrando.
A Itália marca e o silêncio volta a se impor.
Branco marca para o Brasil… Taffarel defende o chute de Massaro para o Brasil… Dunga marca para o Brasil.
Então, é chegado o momento que vai mudar não apenas a sua vida, mas as vidas de milhões de brasileiros.
Baggio aparece para efetuar a cobrança pela Itália e perde. O Brasil se consagra o campeão da Copa do Mundo da Fifa de 1994.
Durante as comemorações, fica claro para você o que você deseja fazer pelo resto de sua vida. Você finalmente vai compreender o que o futebol representa para os brasileiros. Você vai sentir o poder desse esporte para os brasileiros. Mais importante, você verá a felicidade que o futebol traz para a vida dos brasileiros.
“Eu vou jogar pelo Brasil”, você vai dizer para si mesmo naquele dia.
Nem todo mundo acredita em você, especialmente pela maneira como você joga.
Haverá quem diga – ok, será um técnico em particular – para você não jogar da maneira como você joga. Esse técnico em especial acreditará que você precisa ser mais sério, que deve parar de driblar tanto. “Você jamais será um jogador de futebol”, esse técnico dirá.
Use essas palavras como motivação. Use essas palavras para ficar concentrado. E então pense nos jogadores que fizeram o jogo bonito – Dener, Maradona, Ronaldo.
Pense no que o Pai disse: jogar livre e apenas brincar com a bola. Jogue com alegria. Isso é algo que muitos técnicos não entenderão, mas quando você estiver em campo, você jamais irá calcular. Todas as coisas vão acontecer naturalmente. Antes de você ter tempo para pensar, seus pés já terão tomado a decisão.
A criatividade te levará mais longe do que o cálculo.
Um dia, apenas alguns meses depois de Romário levantar a taça da Copa do Mundo de 1994, o seu técnico no Grêmio te levará para o escritório depois de um dia de treino. Ele te dirá que você foi convocado pela Seleção Brasileira sub 17. Quando você chegar à sede da Seleção Brasileira em Teresópolis, haverá uma lembrança da qual você jamais se esquecerá: quando você entrar no refeitório, você vai reparar nas fotos emolduradas nas paredes – Pelé, Zico, Bebeto.
Você caminhará nos mesmos corredores como aquelas lendas do futebol. Você vai se sentar nas mesmas mesas de refeitório que Romário, Ronaldo e Rivaldo se sentaram. Você vai dormir nos mesmos dormitórios que eles dormiram. Quando você colocar a cabeça no travesseiro, seu último pensamento do dia será: eu me pergunto quais dos meus ídolos dormiram neste mesmo travesseiro, também.
Nos quatro anos seguintes, você não fará nada, a não ser jogar futebol.
Você vai viver a vida em ônibus e campos de treinamento. Na verdade, de 1995 a 2003, você nunca vai tirar férias. Será muito intenso.
Mas quando você completar 18 anos, você vai conseguir algo que faria seu pai ficar muito orgulhoso. Você fará sua estreia pela equipe principal do Grêmio. A única parte triste é que Roberto não estará lá. Uma lesão no joelho vai abreviar o tempo dele no Grêmio e ele vai para a Suíça para jogar. Você não vai conseguir compartilhar o campo com seu herói, mas você passou tantos anos assistindo Roberto que você saberá o que fazer e como agir.
No dia dos jogos, você andará pelo estacionamento onde seu pai trabalhava como segurança nos fins de semana. Você entrará no vestiário onde seu irmão costumava levá-lo quando criança. Você vai puxar a camisa tricolor do Grêmio. E você vai pensar: a vida não pode ficar melhor do que isso. Você vai pensar que finalmente você alcançou o seu objetivo, jogar pelo clube de sua cidade.
Mas não é aqui que sua história termina.
No ano seguinte, você jogará sua primeira partida pela seleção brasileira. Uma coisa engraçada vai acontecer. Você na verdade vai aparecer para treinar um dia mais tarde do que os seus colegas de equipe. Por quê? Você estará atrasado graças a um jogo do Grêmio contra o Internacional pela final do Campeonato Gaúcho.
Jogando pelo Internacional estará o capitão pela seleção brasileira de 1994 campeã da Copa do Mundo, Dunga.
Você vai jogar muito bem nesta partida. Então, quando você chegar para o seu primeiro dia de treinamento com o Brasil, seus ídolos – os caras que assistiu na Copa do Mundo de 94 – estarão falando de um jogador: o garoto que usava a camisa 10 do Grêmio.
Eles estarão falando de você.
Eles vão falar de como você driblou Dunga. Eles vão comentar a respeito do gol do título, marcado por você. Mas não fique muito confiante, porque eles não vão pegar leve com você. Este é provavelmente o momento mais importante da sua vida. Quando você chegar a este nível, as pessoas vão esperar muitas coisas de você.
Você vai continuar jogando do seu jeito?
Ou vai começar a calcular? Vai jogar de forma segura?
O único conselho que tenho para te dar é esse: Faça do seu jeito. Seja livre. Ouça a música. Esta é a única maneira de você viver sua vida.
Jogar pelo Brasil vai mudar a sua vida. De repente, portas que você sequer sabia que estavam disponíveis para você vão começar a se abrir.
Você vai começar a pensar em jogar na Europa, onde muitos de seus heróis foram para ser provados e para espalhar o estilo brasileiro de futebol. Ronaldo vai te contar sobre como é a vida em Barcelona. Você verá os prêmios dele, Ballon D’Or que ele conquistou, os troféus dele pelo clube. De repente, você vai querer fazer história também. O seu sonho vai além do Gremio. Em 2001, você vai assinar com o Paris Saint.-Germain.
Como posso dizer a uma criança que nasceu uma casa de madeira em uma comunidade como será a vida na Europa? É impossível. Você não vai entender, mesmo que eu te diga. A partir do momento em que você sair para Paris, Barcelona e, em seguida, Milão, tudo vai passar muito, muito rápido. Alguns dos meios de comunicação na Europa não vão compreender o seu estilo de jogo. Eles não vão entender por que você está sempre sorrindo.
Bem, você está sorrindo porque o futebol é divertido. Por que você ficaria sério? Seu objetivo é espalhar a alegria. Vou dizer novamente – criatividade antes do cálculo.
Permaneça livre, e você vai ganhar uma Copa do Mundo para o Brasil.
Permaneça livre, e você ganhará as Ligas dos Campeões, La Liga, Serie A.
Permaneça livre, e você ganhará uma Ballon d’Or.
O que fará você ter mais orgulho, no entanto, é o fato de você ter ajudado a mudar o futebol em Barcelona com o seu estilo de jogo. Quando você chegar na Espanha, o Real Madrid será a grande sensação do futebol espanhol. Alguns anos depois, no momento em que você deixar o clube, as crianças vão sonhar jogar “do jeito do Barcelona.”
Mas me escute. Seu papel nisso é muito mais importante do que o que você faz no campo.
No Barcelona, você vai ouvir a respeito de um jovem jogador na equipe de base do clube. Ele usa o número 10 como você. Ele é pequeno como você. Ele brinca com a bola como você. Você e os rapazes irão vê-lo jogar pelo plantel juvenil do Barcelona, e, nesse momento, você vai saber que ele vai ser mais do que um grande jogador de futebol. O garoto é diferente. Seu nome é Leo Messi.
Você vai dizer aos treinadores para levá-lo para jogar ao seu lado na equipe profissional. Quando ele chegar, os jogadores do Barcelona vão falar sobre ele como os jogadores da Seleção Brasileira estavam falando sobre você.
Eu quero que você dê a ele um pequeno conselho.
Diga a ele: “Eu quero que você jogue com alegria. Jogue com liberdade. Apenas brinque com a bola nos pés.”
Mesmo depois de você ter ido embora, o estilo jogo bonito vai existir no Barcelona através de Lionel Messi.
Muitas coisas vão acontecer na tua vida, coisas boas e coisas ruins. Mas tudo o que vai acontecer você deve ao futebol. Quando as pessoas questionarem o seu estilo, ou por que você sorri depois de perder um jogo, eu quero que você pense em uma lembrança.
Quando teu pai deixar esta terra, você não terá nenhum filme dele. Tua família não tem muito dinheiro, então seus pais não possuem uma câmera de vídeo. Você não será capaz de ouvir a voz de teu pai, ou ouvi-lo rindo novamente.
Mas entre suas posses, há uma coisa que você sempre terá que lembrar dele. É uma foto de você e ele jogando futebol juntos. Você está sorrindo, feliz com a bola em seus pés. Ele está feliz em te ver.
Quando o dinheiro vier, e a pressão, e os críticos, permaneça livre.
Jogue como ele disse para você jogar.
Brinque com a bola”.