Nesta quarta-feira, 27, começam os Jogos Paralímpicos de 2024, em Paris. O Brasil, com um ótimo histórico, promete se destacar, tendo convocado 255 atletas com deficiência, a maior missão brasileira na competição desde a Rio 2016.
A expectativa é grande, já que em 2021, em Tóquio, o país igualou o resultado recorde da edição anterior, com surpreendentes 72 medalhas, sendo 20 de ouro. Os motivos por trás do desempenho excepcional, apesar da falta de inclusão do país, foram discutidos em reportagem de VEJA.
Neste ano, a delegação ainda contará com outros dois recordes: será o maior número de atletas femininas (117) e uma quantidade inédita de novatos (88) que se somarão aos 4.400 atletas de 168 delegações diferentes.
O presidente da Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), Mizael Conrado, concedeu entrevista a VEJA para falar sobre as expectativas para esse edição dos jogos, a preparação dos nosso atletas e o contexto brasileiro de inclusão. A íntegra você pode ler a seguir.
Como estão as expectativas para os jogos deste ano? Podemos esperar mais uma quebra de recorde no número de medalhas? Olha, nós trabalhamos muito, foi um ciclo desafiador, mais curto que o tradicional, mas a expectativa é grande. Nos mundiais de várias modalidades o Brasil teve uma participação muito boa. Obviamente, a participação em Tóquio também já foi uma participação expressiva, a melhor da história, com 72 medalhas no total. É um número muito difícil de ser batido, mas estamos confiantes em fazer a melhor campanha da história.
Como é que o senhor avalia a evolução do país nessas últimas décadas? De maneira muito positiva. Se a gente pensar que em 96, em Atlanta, o Brasil era a 37ª força, e já em 2008 passamos a fazer parte do seleto grupo das 10 potências, foi uma evolução realmente muito significativa. E o que nos alegra é que o futuro será ainda melhor que o presente.
Por que? Principalmente depois de 2017, nosso planejamento estratégico passa a focar muito na iniciação, numa lógica de desenvolvimento esportivo que contempla desde a oferta da oportunidade para a criança fazer esporte até o treinamento de alto rendimento. Só nas nossas escolinhas, são mais de 7 mil crianças. Nos próximos anos, a gente vai ter uma base ainda mais forte.
Como o Brasil, que não é conhecido pela sua inclusão, consegue se sair tão bem nas Paralimpíadas? A que se devem esses resultados? No Brasil, a gente tem uma legislação importante, mas que, lamentavelmente, ainda não é cumprida. Só para fazer parte da sociedade, as pessoas com deficiência já travam uma grande batalha. É um país em que você já nasce com a obrigação de ser super-herói. O segundo ponto, naturalmente, é o apoio dos governos para o esporte. Hoje temos uma equiparação em muitas políticas públicas entre o apoio para jogos olímpicos e paraolímpicos, isso é muito importante.
Que medidas foram importantes? O grande início de tudo isso foi o reconhecimento do esporte Paralímpico pela Lei Pelé, primeiro dispositivo legal que reconhece essa modalidade dentro do Sistema Nacional do Esporte, em 1998. Em 2001, a promulgação da Lei Agnelo Piva, que destina parte do rendimento das loterias para o esporte, também foi essencial para estruturar o Comitê Paralímpico. Depois vem o patrocínio das Loterias Caixa, em 2003, os programas de Bolsa Atleta, em 2005 e, por fim, a Rio 2016, que permitiu a criação do Centro de Treinamento Paralímpico.
A nossa delegação está indo para a competição com o número recorde de esportistas femininas. Isso foi um movimento natural ou é resultado de uma busca ativa? Isso é resultado exatamente da estratégia que foi formulada lá em 2017. Um dos eixos principais é exatamente avançar na representatividade de mulheres e atletas com classes baixas, que são as classes de deficiências onde os atletas têm a maior limitação. A gente vem fazendo uma busca ativa, priorizando a participação feminina. Nós criamos um Fundo de Fomento que prioriza esse grupos, além de jovens de idade inferior a 23 anos. Então, esse é um reflexo do trabalho que vem sendo feito há 8 anos.
Que outras mudanças o planejamento estratégico de 2017 trouxe? A gente funcionava como uma confederação que recebia os atletas, realizava as competições e selecionava os melhores para a Parapan e para a Paralimpíada. Hoje, nós vamos até os atletas, por meio do centro de referência e por meio do Festival Paralímpico. Ano passado nós reunimos mais de 40 mil crianças em 119 cidades. A nível da gestão organizacional, nós também crescemos bastante, cumprindo os pilares de ESG, investindo em sustentabilidade e responsabilidade social. Hoje nós temos um conselho de maioria independente e estamos em vias de obter certificações ISO anticorrupção e de compliance. Seremos a única organização esportiva do mundo a ter as duas certificações.
A saúde mental é um tema que tem ganhado espaço nas últimas competições. Como é que esse tema é tratado dentro das políticas do CPB? O tema da saúde mental é muito relevante, não só no esporte, mas para toda a sociedade brasileira. Nós temos aqui um time de ciência do esporte que trabalha de maneira integrada, porque não dá para você olhar para o indivíduo de maneira fragmentada. Não podemos ter um olhar para a cabeça, para a nutrição, para a biomecânica de maneira individual. Isso tudo precisa ser olhado de maneira sistêmica e coordenada, e nosso time faz isso muito bem. Temos excelentes profissionais na área da psicologia esportiva. Antigamente, os atletas tinham acesso aos psicólogos apenas no período das grandes competições, hoje, nossa equipe trabalha de forma perene, coordenada com todas as outras áreas.
Nas últimas semanas, muito foi discutido sobre o impacto da extinção do ministério dos Esportes durante o governo Bolsonaro. Isso afetou o CPB? E, por outro lado, houve uma influência da retomada dessa pasta na gestão atual? Obviamente, quanto maior for a representação institucional, melhor. Isso é um fato. Entretanto, o fundamental é o estabelecimento do esporte como uma política de Estado. O Ministério é importante, mas o compromisso do governo é ainda mais fundamental. E eu creio que a maior parte da política esportiva, sobretudo a política de base, deve estar conectada com a educação. Para você consolidar uma cultura esportiva, o esporte precisa, necessariamente, começar na escola.
Ainda sobre isso, o resultado do Ideb mostrou um avanço, mas a qualidade da educação no país continua precária. Como o senhor vê o papel do esporte em melhorar isso? Lamentavelmente, a gente não tem atendido às expectativas dos nossos jovens. E quando a gente fala de pessoas com deficiência, isso é ainda mais problemático. Ainda é comum uma criança com deficiência ser liberada da aula de educação física. Isso é muito triste. É muito comum que as escolas não tenham nenhum professor que conheça o método Braille. Como é que um cego vai ser alfabetizado se o professor sequer conhece o seu método de leitura e escrita? Então, realmente, eu creio que a educação é a área que o Brasil mais tem que se desenvolver. Onde é que o esporte entra nisso? O esporte molda a sociedade com os princípios de disciplina, resiliência e trabalho em equipe. O esporte pode ser um grande parceiro da estratégia da educação.
O que o senhor acha que ainda falta para atrair ainda mais atletas e para que o esporte consiga alcançar ainda mais pessoas com deficiência? O que falta é a gente conseguir verdadeiramente atingir aquelas crianças que estão na escola e que são dispensadas da atividade física. Hoje nós temos 72 centros de referência e queremos atingir um número de 560, para atingir cada vez mais municípios. Uma outra ação que estamos fazendo para atingir esse objetivo é assinar um convênio com o Estado de São Paulo para que nós possamos contribuir com o Estado no atendimento de crianças com deficiência na rede pública, recrutando profissionais e fomentando uma estratégia inclusiva para a educação física. Esse vai ser um piloto importante,. Além disso, o poder publico precisa agir para resolver um grande problema que temos de falta de infraestrutura.
Que mensagem o senhor espera que a nossa delegação passe esse ano para a nossa população, para os nossos governantes e para outras pessoas com deficiências? Eu espero que a sociedade possa perceber, a partir dos resultados, que as pessoas com deficiência são cidadãos como quaisquer outras, e que elas podem, sim, ser o orgulho nacional. E se elas podem orgulhar toda uma pátria, por que elas não podem estar incluídas na sociedade? Por que ela não pode estudar nas mesmas escolas? E por que ela não pode trabalhar nas mesmas empresas? Que o esporte possa trazer para a nossa sociedade esse sentimento tão importante, capaz de criar um ambiente inclusivo, capaz de criar um país que seja para todas as pessoas.