Não foi exatamente como o eureca de Arquimedes (287 a.C.-212 a.C.), ao notar que o volume de água da banheira subia na medida em que ele descia com seu corpanzil, mas houve espanto de sucesso. Diz a lenda — e as lendas fazem bem às invenções — que o publicitário e designer mineiro Heine Allemagne via pela TV, em 1999, uma partida de futebol entre Brasil e Argentina quando Galvão Bueno, ao perceber os jogadores perfilados avançando na direção da bola, exclamou: “Quero ver o cidadão que vai manter a barreira no lugar!”. E, então, Allemagne teve uma sacada: foi ao banheiro, ali onde poderia estar Arquimedes, e traçou uma linha branca com o creme de barbear. Nascia, sem pompa — muito antes do VAR —, uma ideia que chacoalharia o esporte mais popular do mundo.
A marca branca no gramado, que passaria a ser utilizada a partir de 2000 em um torneio de Minas Gerais, evitaria a esperteza dos atletas nas faltas, mantendo-os na distância regulamentar de 9,15 metros da bola. A CBF adotou a novidade oficialmente a partir de 2002, ela depois alcançou os jogos da Libertadores da América, em 2009, e, enfim, a Copa do Mundo, em 2014. Antes do uso da ferramenta, a média de tempo gasto em uma cobrança era de um minuto a um minuto e cinquenta segundos. Agora, é de quarenta segundos a um minuto por falta cobrada. E adeus aos passinhos à frente…
Esse é o roteiro bonito da história, a aventura de uma criação simples e engenhosa. Há por trás dele, contudo, uma trajetória que envolve a briga pela ideia, ganância de poderosos cartolas e vaivém jurídico interminável — que agora, tal qual a serpentina que dá uma voltinha a mais só para nos surpreender, ganhou capítulo que autoriza alguma reviravolta. A patente, registrada no início do século, foi concedida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) em 2010. Não demorou para que a entidade máxima do futebol se interessasse pela bisnaguinha. Allemagne foi convidado a apresentações e workshops, treinou os árbitros, era querido e celebrado. A Fifa prometeu adquirir a patente, lavrada em 44 países, pela qual pagaria 40 milhões de dólares. Em 2014, porém, antes da Copa no Brasil, a oferta caiu a 500 000 dólares. “Foi um valor irrisório e humilhante”, disse Allemagne a VEJA. Durante o torneio, a Fifa chegou a encobrir o rótulo das latas de spray de modo a esconder a marca Spuni, do mineiro. As negociações foram encerradas, em litígio, e os dirigentes internacionais não se incomodaram em apelar para marcas que imitavam o modelo original.
A briga foi parar nas cortes. Em 2021, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro condenou a Fifa. O desembargador Francisco de Assis Pessanha Filho apontou “flagrante má-fé negocial, violando o nome da empresa autora e quedando-se inerte na concretização do negócio jurídico”. Allemagne celebrou o feito — “o Golias do futebol perdeu para um brasileiro”, disse. Contudo, deu-se o contra-ataque, ainda sem decisão final, mas suficiente para apartar Allemagne de sua engenhosa traquitana. O Inpi, que desde o início dera aval ao processo e que em três momentos celebrou a qualidade do trabalho, voltou atrás, alegando “supostas irregularidades técnicas na descrição da patente do spray”.
A novidade, agora, obtida com exclusividade por VEJA: um parecer de uma perita técnica nomeada pela Justiça, Wanise Borges Gouvea Barroso, reafirmou a validade da patente, reconhecendo nela uma “atividade inventiva”. Além do mais, identificou inconsistências nas argumentações contrárias a Allemagne. De acordo com o documento da perícia, a negativa estava amparada em regulações posteriores à análise e aprovação e não apresentou qualquer justificativa para a mudança de entendimento. A Fifa alega não ter mais nada a dizer, estando tudo nos autos. “Há uma perda de segurança jurídica diante de opiniões contraditórias sem que houvesse alterações na apresentação do invento”, diz Alexandre Trinhain, especialista em propriedade intelectual e sócio da IPlatam Marcas e Patentes.
O caso, a partir da recente avaliação, segue para a manifestação das partes e sentença de primeiro grau. A patente já expirou e caiu em domínio público, conforme prevê a legislação. Mas, ao tentar anulá-la, a Fifa busca evitar pagar pelo tempo que usou o spray e esvaziar o objeto da ação em que foi condenada em 2021. Afinal, se não houver patente, não há o que indenizar. A briga tende a ir longe, e não há linhas divisórias que impeçam a contenda. Os dois lados se defendem como podem. Mas há um fato inquestionável. Uma possível derrota de Heine Allemagne é um empecilho a mais no avanço da engrenagem de inovações no Brasil, que não anda lá muito bem das pernas. O país aparece apenas na 54º posição no ranking do Índice Global de Inovação. A melhor marca, o 47º lugar, foi atingida em 2011. Que outros eurecas despontem no horizonte, apesar das dificuldades.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860