Parecia impossível. O corpo suavemente retesado soltou-se do ponto mais alto das barras assimétricas, girou livre no ar, planou acima da segunda barra e pousou com impudente firmeza no solo do Stadium, em Montreal. Era 1976, a romena Nadia Comaneci, aos 14 anos, virara a pequena rainha da ginástica artística feminina — com a leveza de uma pluma (40 quilos distribuídos em 1,53 metro) e o peso do chumbo, dada a certeza dos passos. A nota 10, improvável, uma contradição em termos, espantou o mundo e desnorteou os técnicos suíços dos painéis eletrônicos que exibiam as avaliações dos jurados — como as marcações chegavam a apenas 9.9, deu-se um jeito de 1.0 parecer 10. Nadia foi a estandarte da primeira revolução na ginástica artística.
A segunda revolução tem como ímã a americana Simone Biles, de 26 anos. Comparar uma com a outra, embora soe reducionista, ajuda a entender o modo pelo qual o tempo moldou o esporte — em sucessivos movimentos de compreensão dos limites do corpo humano. Simone é mais rápida e mais forte — mas a rapidez e a força não a fazem menos graciosa. Uma e outra, ao recriar a modalidade, viraram mitos. Nadia voou no auge da Guerra Fria, tempo em que a explosão de atletas dos satélites da União Soviética era recebida com desconfiança, dada a sombra política que as cercava. Simone agora, estrela de um período em que tudo se sabe e tudo se vê, na ágora infinita de múltiplos espelhos das redes sociais. A uni-las o sorriso aberto emoldurado pela timidez.
Mas não seria errado afirmar, com a firmeza de uma cravada depois de um mortal, que Simone é maior, assim como Michael Phelps engoliria Mark Spitz, gênios das piscinas de eras distintas. Na semana passada, como se fosse preciso reafirmação, a ginasta de Ohio, adotada pelo avô materno, porque a mãe não tinha condições de criá-la, levou o ouro no individual geral feminino do Campeonato Mundial em Antuérpia. Ela venceu na soma de pontos das quatro provas do circuito para mulheres: solo, salto sobre a mesa, barras assimétricas e trave de equilíbrio. A prata ficou com a brasileira Rebeca Andrade, nome incontornável no maltratado rol de glórias brasileiras. Lembre-se que, nas provas por aparelhos, a brasileira levou ouro no salto, deixando Simone para trás.
E foi no salto, na disputa por equipes, que a moça dos EUA escreveu capítulo histórico. Ela realizou um salto impossível — agora rebatizado como “Biles 2”. Antes era o “Yurchenko Double Pike”, cujo movimento inicial foi executado, há décadas, pela soviética Natalia Yurchenko. Não é brincadeira: a ginasta salta de costas em direção ao aparelho, se apoia com as mãos, ganha impulso para fazer dois mortais com as pernas esticadas e as mãos sob os joelhos. São seis segundos de tirar o fôlego, seis segundos que a instalam entre os mais interessantes personagens do esporte, que foi ao fundo do poço para buscar ar.
Eis aí um outro ponto que a faz diferente de todas as outras e autoriza sua trajetória a sair das fronteiras dos ginásios. Na Olimpíada de Tóquio, em 2021, ela comoveu ao abandonar a competição, revelando-se humana, demasiadamente humana, deprimida e pressionada. Disse, depois de uma prova, estar passando por twisties. É fenômeno conhecido na ginástica. De repente, o corpo do atleta não responde mais a ele mesmo, e suas referências desaparecem. É uma espécie de desconexão que leva à desorientação. “Treinei a minha vida toda, eu estava pronta, mas algo aconteceu fora do meu controle”, disse. “Mas, no fim das contas, a minha saúde importa mais do que qualquer medalha.”
Corajosa, fez o que nenhum outro grande atleta tinha feito. Parou tudo, foi cuidar da vida, fez acompanhamento psicológico — e agora retornou. E Simone, ao atingir o improvável, depois da saída de cena, humanizou a atividade esportiva como nunca antes, fazendo de super-heróis gente de carne e osso. É muita coisa. “Simone impressiona pela precisão e pela capacidade de realizar exercícios que, até então, apenas os meninos conseguiam”, disse a VEJA a ex-ginasta Daiane dos Santos.
O mundo vai parar para acompanhar Simone nos Jogos de Paris, em 2024. Ela já tem quatro medalhas de ouro, uma de prata e duas de bronze, além de seis títulos mundiais. O pacote resulta em 34 medalhas, a mais premiada ginasta de todos os tempos. Vê-la duelando com Rebeca será bonito. Uma ao som — sem letras, claro — de Unicorn, da israelense Noa Kirel (“Ficarei de pé aqui como um unicórnio / sozinha aqui na minha / eu tenho o poder de um unicórnio”), e a outra com o Baile de Favela (“Que ela veio quente e hoje eu tô fervendo”). Haja delicada fervura.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2023, edição nº 2863