Perdeu-se no tempo o momento em que o torcedor brasileiro cortou laços com a seleção masculina de futebol. A genealogia do desastre é complexa. Supõe-se que tenha começado na Copa de 1982, na Espanha, com a derrota do excepcional time de Telê Santana para a Itália do carrasco Paolo Rossi. A partir de então, mesmo com as honrosas e meritórias conquistas de 1994, nos Estados Unidos, e 2002, no Japão e Coreia, tempo de Romário, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho, construtores do tão propalado penta, a liga nunca mais foi refeita. A ponto de a famosa camisa canarinho, símbolo de nossa supremacia no esporte, ter sido sequestrada nos últimos anos como uniforme de passeata por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. A virada política do ano passado pressupunha renascimento do interesse pela amarelinha, mas não. Polarização? Nesse terreno, parece nem mesmo existir, e o descaso com o escrete soa tristemente unânime no país do futebol.
Ao ser empossado como novo treinador da seleção, Dorival Júnior lembrou do divórcio, e não por acaso avisou que sua primeira convocação seria “o povo brasileiro”. O tom ufanista não resolve o problema central: é improvável refazer a relação de amor por decreto. O modo como Dorival foi tirado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) do São Paulo, aliás, dá pistas do tamanho da dificuldade de recomposição. O técnico campeão da Copa do Brasil no ano passado com o tricolor paulista virou primeira opção como comandante da seleção depois que o italiano Carlo Ancelotti renovou contrato com o Real Madrid.
Afastado e posteriormente reconduzido à presidência da CBF em eterno e caótico vaivém feito de politicagem e processos, Ednaldo Rodrigues nunca escondeu que Ancelotti era seu objeto de desejo. Garantia ter feito acordo com ele, mas terminou como conversa para boi dormir. Ancelotti, que não é bobo nem nada, disse não. E, então, o interino Fernando Diniz, que dividia seus afazeres com o Fluminense até a chegada de um messias, foi sumariamente defenestrado. “Uma seleção do tamanho do Brasil não pode ter interino”, disse Muricy Ramalho, coordenador técnico do São Paulo, amigo de Dorival. “Para mim, o Diniz tinha de continuar, tinha de ser o técnico, não dava para esperar o Ancelotti. Acho que, se ele chegasse aqui e visse a bagunça, não iria ficar nem cinco minutos.”
O resultado de tanta confusão pode ser medido pelo ano de Diniz nas Eliminatórias — o pior da história (veja no quadro), com um melancólico sexto lugar, com três derrotas sucessivas para Uruguai, Colômbia e Argentina. Ressalte-se haver escassez de grandes jogadores e o melhor deles, hoje contundido, Neymar, preocupa-se mais com o que vai fora do gramado do que com a bola nos pés. E não é de hoje. Viralizou nas redes sociais, a partir de 2016, a imagem do menino que durante a Olimpíada do Rio riscou o nome do camisa 10 e escreveu o de Marta. O Brasil dos homens, naquele ano, levou a medalha de ouro, e as mulheres não. Mas os humores pouco mudaram e ainda agora aquela imagem perpetua a constrangedora falta de motivação pelo futebol da seleção.
O primeiro passo de um futuro melhor — atrelado ao tolo slogan “Novos sonhos para sonhar”, imaginado pela CBF para 2024 — pressupõe vitórias em campo e paz nos gabinetes. Em meio à cruzada por reaver o prestígio perdido da seleção, Dorival já tem definidas suas primeiras partidas como comandante: dois amistosos, um contra a Inglaterra e outro contra a Espanha, no fim de março — as Eliminatórias voltam apenas em junho. Enquanto isso, o cartola Rodrigues tem se protegido como pode de futuras investidas — e de novas denúncias — contra sua permanência na presidência da CBF. Obteve apoios da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) e da Federação Internacional de Futebol (Fifa), além dos quarenta clubes das duas principais divisões brasileiras. A decisão liminar que o reconduziu ao gabinete, assinada pelo ministro Gilmar Mendes, do STF, ainda deve ser julgada pelo plenário da Corte, o que só acontecerá depois do fim do recesso.
Há pressa, o tempo passa e logo estaremos nos acréscimos. Como então reconquistar o brio e a paixão? Há quem apele ao “Sobrenatural de Almeida”, o codinome do personagem salvador da pátria de Nelson Rodrigues, há quem brinque porque não há outro modo — e brinca-se até com a postura religiosa dos atletas. “Nas entrevistas, os jogadores brasileiros, mesmo os que atuam lá fora, agradecem a Deus em primeiro lugar. E o que Ele tem a ver com o gol feito, com a defesa quase impossível?”, diz o escritor Mario Prata, autor do romance histórico O Drible da Vaca, sobre os primórdios do ludopédio. Não está fácil para ninguém.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876