Direto ao ponto, para que não reste dúvida: a tenista americana Serena Willians, que se despediu das quadras aos 40 anos, talvez seja a maior esportista do sexo feminino de todos os tempos. Dito de outro modo: ela tem a dimensão de Muhammad Ali, e seria sexista dizer que foi “o Ali de saias”, porque o correto mesmo é afirmar que ele é quem foi a “Serena de luvas de boxe”. A estatística, que no tênis vale muito dinheiro — ela ganhou prêmios que ultrapassam os 94 milhões de dólares —, é nítida: foram 73 títulos, 23 deles de Grand Slams, o circuito de luxo formado pelos torneios abertos da Austrália e dos Estados Unidos, Wimbledon e Roland Garros. Apenas a australiana Margaret Court venceu mais — 24 — nos anos 1960 e 1970, de menor competitividade.
A comparação com Ali é cabível porque, tal como o pugilista, Serena sempre soube fazer parte de uma sociedade que, a rigor, não a aceitava — por ser negra, por ser mulher, por ser forte. Na contramão, ela subverteu as expectativas de comportamento de atletas do sexo feminino e, por extensão, o que se espera de mulheres nos locais de trabalho. E o que se espera, depois da revolução de Serena, é simples: que façam o que quiserem, sem repressão machista ou de qualquer outra ordem. Quando supostos especialistas ou racistas riam de sua aparência física, a tachando de “masculina”, ela dobrava a aposta, e foi ficando cada vez mais forte. Com tanto sucesso nas quadras — e tendo levado dez de seus troféus de Grand Slam depois dos 30 anos, o que é extraordinário, e um deles, em 2017, grávida — conquistaria ainda mais grandeza em um momento quase antiesportivo, mas definidor de seu caráter e de sua relevância histórica. Nesse aspecto, ela se aproxima ainda mais de Ali, gênio entre quatro cordas que faria fama por desafiar as autoridades americanas ao se recusar a servir o Exército americano durante a Guerra do Vietnã, em meados dos anos 1960.
O instante mágico de Serena aconteceu em 8 de setembro de 2018, no Arthur Ashe Stadium, na final do Aberto dos Estados Unidos contra a japonesa Naomi Osaka, diante de mais de 23 000 pessoas na quadra e milhões à frente da TV. Ela perdeu para Naomi, dezesseis anos mais nova — mas pouco importou. O que está eternizado foi a diatribe disparada contra o árbitro português Carlos Ramos, que a havia punido por ter entrado em contato com o treinador, o que era proibido. Depois de quebrar a raquete, depois de levar as mãos ao rosto, nervosa, ela se aproximou da cadeira, dedo em riste, e gritou: “Sou mãe, prefiro perder do que roubar! Você me deve desculpas, me deve desculpas! Você é um mentiroso e um ladrão! Nunca mais vai apitar um jogo meu! É porque sou mulher e você sabe disso! Se fosse um homem, não faria isso!”.
Ninguém menos que Billie Jean King, outra tenista fundamental, saiu em defesa de Serena: “Quando uma mulher é emotiva, a chamam de histérica e ela é punida. Quando um homem faz a mesma coisa, ele está sendo sincero, e não há repercussões. Obrigada, Serena, por chamar a atenção para esse duplo padrão”. Convém lembrar — para que a comparação não se perca nas imprecisões — que nesse tema, o da defesa dos direitos das mulheres, Muhammad Ali sempre foi machista, e aqui eles se distanciam. “Ela, a irmã, os pais sempre tiveram um propósito muito claro, e não era apenas jogar bem tênis e conseguir bons resultados”, diz o brasileiro Fernando Meligeni, que conviveu longamente com as Williams no circuito internacional.
Há melancolia com a despedida de Serena porque ela nunca foi uma só (e quem não riu e chorou com a aventura de sua vida ao lado da irmã Vênus, transformada em filme, o retrato da obsessão de um pai que sabia ter filhas especiais?). Ela não era somente a supercampeã (das nove finais de Grand Slam contra a irmã, venceu sete). Não era apenas rápida, com um saque inigualável e decisivo. Sabia ter responsabilidade pública, e dela nunca se afastou. Cabe lembrar, portanto, a resposta dada a um jornalista depois daquela tarde tensa da primavera nova-iorquina, enfurecida com o árbitro. Instada a dizer o que explicaria à sua filha ao relatar a confusão, resumiu: “Vou dizer a ela que estava defendendo o que acreditava, e que isso era certo. Às vezes as coisas não acontecem da forma que queremos, mas é sempre preciso ser amável e humilde, essa é a lição que aprendi do que fiz”.
Serena Williams fará falta. Ela agora está dedicada a palestras motivacionais, ao mercado financeiro e à família — mas sorte a nossa existir o YouTube, e nele estar pendurado imagens da campeã. Busque pelo ponto mágico nas quartas de final do Aberto da Austrália, em 2001, contra Martina Hingis. Não há nada mais espetacular.
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806