Os termômetros batem nos 30 graus na hora do almoço durante o inverno do Catar, mas o país-sede da Copa vive uma espécie de Primavera Árabe subtraída de política. Há, nas ruas de Doha, intensa e genuína celebração entre os povos muçulmanos reunidos para o torneio — torcedores de seis países que iniciaram a primeira fase da competição (veja abaixo). A alegria espraiada pelo deserto faz rir o presidente da Fifa, Gianni Infantino, celebrado como pop star, o que não apaga, é óbvio, a escolha de um país coalhado de denúncias trabalhistas e de sobejo comportamento preconceituoso contra mulheres e gays. “Esta é uma oportunidade para o Catar e o Oriente Médio se mostrarem para o mundo”, avisa o dirigente em vídeo promocional no voo da Qatar Airways.
A decisão pelo Catar, em 2010, foi ruidosa, além de navegar em escândalos de compra de votos. Era a Fifa sendo Fifa, em seu anseio de ampliar horizontes e, nessa trilha, pôr mais dinheiro nos cofres. Mas haverá, sim, um efeito para além da controvérsia: a lembrança, e que seja apenas a lembrança, do estado de ânimo desses dias de futebol, sobretudo entre fãs de países vizinhos que dividem um pouco da cultura e da religião com o Catar — embora, ressalve-se, não exista uma unidade clara entre os mais de 400 milhões de pessoas de uma faixa de terra que vai do Marrocos ao Afeganistão. Mas há evidentes traços comportamentais que não podem ser excluídos, e eles dançam na entrada dos estádios, na algazarra depois das partidas, mesmo em dias de derrota.
O respeito às leis do Islã foi exibido para mais de 3 bilhões de pessoas pela TV com a recitação de versos do Alcorão na cerimônia de abertura. A proibição de venda de bebidas alcoólicas nos estádios e a inclusão de salas de orações dentro das arenas foram outra demonstração de poder dos discípulos de Maomé. Engana-se, no entanto, quem pensa que a falta de birita diminuiu a excitação dos torcedores — pelo menos não os da ala oriental. Todos os dias, até altas horas da madrugada, enormes grupos se formam nas ruas para cantar, bailar e fumar narguilé.
Tunisianos, marroquinos e sauditas são os mais empolgados, numa espécie de estado de sítio reverso, porque agora pode quase tudo. Noite adentro, na região do Souq Waqif, principal mercado de Doha, um grupo de jovens árabes requebrava ao som do hit Envolver, de Anitta. Os versos eróticos não eram acompanhados de qualquer clima de sedução entre gêneros. A Copa árabe é essencialmente uma reunião de homens heterossexuais eufóricos por terem Messi, Cristiano Ronaldo e cia. por perto, ao menos uma vez na vida. É o que vale, e às favas a vida real, os problemas reais.
O caso da Arábia Saudita é emblemático. O país, governado pelo truculento príncipe Mohammad bin Salman, liderou um corte de relações diplomáticas e econômicas de boa parte das nações do Golfo Pérsico com o Catar, acusando-o de apoio a grupos terroristas e de se aproximar do Irã. O embargo, iniciado em 2017, terminou no ano passado. Como os petrodólares falam mais alto, até o emir do Catar, Tamim bin Hamad Al-Thani, celebrou o inesperado triunfo saudita sobre a Argentina com uma bandeira do vizinho. Diz o torcedor saudita Mohammed Abadi, felizão: “Problemas são normais até mesmo entre irmãos, precisamos saber perdoar”.
Durante um mês, a estratégia já conhecida na diplomacia internacional como sportswashing — o uso do esporte para limpar a barra de um país, seja o que abriga o torneio, seja os que mandaram seleções — viverá seu apogeu. Depois, voltará aquela outra disputa, mais relevante: a briga pelos direitos humanos, e nessa competição o Catar também está perto da lanterninha (na Copa, foi eliminado na primeira fase). Passado o êxtase, cabe uma indagação: ao fim da primavera esportiva, quando o cotidiano voltar ao normal, o que será dos problemas do país? Continuarão, porque o futebol não resolve tudo, longe disso.
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818