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A prata que vale ouro

O segundo lugar de Rebeca Andrade a instala entre as maiores da história da ginástica artística. Simone Biles... bem, ela é de outro mundo

Por Monica Weinberg e Fábio Altman, de Paris
Atualizado em 1 ago 2024, 19h57 - Publicado em 1 ago 2024, 15h52
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  • A cada nota projetada no telão, Rebeca Andrade forçava os olhos míopes para tentar enxergar. Ela tem dificuldade de focar aquele monte de casas decimais. Quando caía a ficha do que havia alcançado, contudo, uma prova depois da outra, vibrava, e voltava ao estado de concentração. E assim veio a prata no individual geral, feito que se iguala ao de Tóquio, em 2021, onde ela levou ainda o ouro no salto.

    Do lado oposto do tablado, quem atraía, e como, as câmeras de televisão e internet de alcance global era a ginasta-sensação Simone Biles (“Bailísss”, na pronúncia do apresentador francês). Dois dias antes, ela havia puxado o time dos Estados Unidos rumo ao ouro. Buscava nova glória, e não deu outra. Foi a sexta medalha dourada da americana – as outras cinco ela ganhou no Rio de Janeiro, em 2016.

    Recebida com efusivos aplausos vindos da torcida que empunhava a bandeira brasileira, mas também de muitas outras  cores, Rebeca sabia ser difícil derrotar a rival (palavra de que, aliás, não gosta), cujos giros e piruetas na arena de Bercy, em Paris, na quinta-feira 1, ela acompanhou com atenção – “vim aproveitar tudo de Paris”, disse – mas sem, no entanto, buscar as notas das adversárias, reafirme-se.

    Foi um belo duelo, com uma e outra oscilando no topo. Sim, Simone, a grande, também errou, nas barras assimétricas e no salto. Nas duas primeiras rotações, Rebeca estava à frente. O suspense pesou no ar até o fim, com o resultado decidido na derradeira parada: o solo, palco de reinado absoluto da americana. Primeiro veio a brasileira. “Re-be-ca, Re-be-ca!” ela ouviu, fez sua exibição e esperou Simone, cuja apresentação foi impecável. E deu o esperado: a prata, muito celebrada por Rebeca, que se cobriu com a bandeira do Brasil, com sorriso aberto.

    Chegar à prata contra Simone Biles é a culminância de anos de sacrifício – Rebeca fez três cirurgias do ligamento cruzado anterior do joelho da perna direita –, mas também do sorriso para tocar a vida e subtrair do esporte o nervosismo que pode levar às quedas. Em Paris, como menina de seu tempo, debruçada no celular (e foi comum vê-la em posição de alongamento, mas o olho na tela), a vice-campeã olímpica na noite de hoje ria com postagens e brincadeiras nas redes sociais. Ao chegar na Vila dos Atletas de Saint-Denis tratou de pedir que a fotografassem voando diante dos anéis olímpicos e na publicação tascou cinco coraçõezinhos de cores diferentes. Ao lado da companheira de bronze por equipes, Lorrane Oliveira, postou uma dancinha com o collant de disputa antes da competição e o aviso premonitório: “Videozinho antes de sermos medalhistas olímpicas. Em breve terá com a medalha”. Riu de uma foto feita pela colega Julia Soares onde se vê a capinha do smartphone guardando dinheiro em espécie e um cartão bancário. “Gente, o meu celular virou o mais famoso do mundo”.

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    O celular e ela também, celebradíssima – embora as medalhas de Tóquio, o ouro no salto e a prata no individual geral, já tenham anunciado a quatro ventos uma atleta de escol. Mas Paris, e porque sempre teremos Paris, foi outra coisa, especialmente por ter ajudado a instalar o Brasil, com o terceiro lugar do quinteto, dentro de um clube seletíssimo. Ginástica artística? Foi sempre modalidade de americanos, japoneses e de países do Leste Europeu que, até os anos 1990, orbitavam em torno da União Soviética. Mal comparando, o desempenho brasileiro é como supor que a Bolívia, país sem litoral, de repente começasse a esmerilhar no surfe. Ou que o Brasil invadisse a seara da China no tênis de mesa (mas, opa, isso aconteceu, com a belíssima olimpíada de Hugo Calderano, e que o primeiro engraçadinho a dizer “pingue-pongue” caia na feroz engrenagem de triturar reputações da internet. A estatística: até o início dos Jogos de Paris, era evidente. Na lista de medalhas olímpicas, entre mulheres, o país com mais premiações é a extinta União Soviética, seguida de Romênia, Rússia, Estados Unidos e China. O Brasil aparecia em honroso, embora modesto, 18° posto. Nada que antevisse, para além da imensa esperança, o sucesso do verão canicular parisiense dentro do ar concidionado a toda da Arena de Bercy.

    A interpretação dos juízes

    Há um detalhe interessante, que tem fugido dos comentários de especialistas, e que ajudou as brasileiras – como a ginástica é modalidade de avaliação subjetiva, apesar de determinações muito claras para os árbitros, um olhar mais generoso sempre é bom. Não que as brasileiras tenham sido privilegiadas – longe disso, muito longe. Mas o respeito que conquistaram, nos últimos anos, mudou a postura de quem as avalia. Eis aí outra conquista de um trabalho muito bem feito, ancorado no bem equipado Centro de Treinamento da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. “As meninas não são máquinas, fizemos nesses últimos anos uma gestão humanizada”, diz Juliana Fajardo, gestora esportiva do Comitê Olímpico do Brasil, que trabalha em conjunto com a Confederação Brasileira de Ginástica. O destaque de Daiane dos Santos, no final dos anos 1990 e início dos 2000 – e quem é que não se lembra do duplo twist duplo carpado, que depois seria batizado como Daiane 1 – serviu de impulso e inspiração para a trupe de Paris. “Chega a arrepiar ver a torcida das companheiras quando uma delas está no tablado”, diz Daiane.

    E então, a estrela cintilante do grupo, Rebeca Andrade – embora a líder seja a veterana Jade Barbosa – bate à porta de um panteão restrito. Ali estão nomes como a russa Olga Korbut, 4 ouros e uma prata na olimpíada de Munique, em 1972, e Nadia Comaneci, a romena de Montreal, em 1976, que deixou até o placar eletrônico perdido com a delicadeza de sua nota 10. E, claro, é lugar sobretudo de Simone Biles, no mais esperado duelo deste verão. Não por acaso, e para tentar distanciar a “régua” Biles, os profissionais de cabeça da delegação brasileira miraram uma estratégia, sabe-se agora, parcialmente vitoriosa. “O trabalho mental era para que Rebeca não ficasse concentrada em Simone Biles”, diz Aline Wolff, psicóloga do COB. Funcionou, até pelo menos o momento em que começaram a girar pelos aparelhos em Bercy, uma à espreita da outra.

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    O medo de Rebeca

    Biles venceu, mas tinha algum receio. Em documentário para o Netflix, a americana admitiu ter “medo” da brasileira. A prata desta quinta-feira, ainda que tenha sido um tantinho frustrante, é colossal. Em Guarulhos, onde começou a treinar no Ginásio Bonifácio Cardoso, brotou a alegria dos grandes momentos e uma janela de luz: Rebeca Andrade influencia uma pequena legião de meninas que sonham ser como ela. “É bonito imaginar que aqui nasceu a melhor ginasta do mundo”, diz Monica Barroso dos Anjos, sua primeira treinadora. Sai de baixo, porque lá vem dancinha nas redes sociais. Poderia ser dourada, mas tudo bem. Rebeca fez história, de novo. Em Tóquio, ela ficou com a prata, atrás da americana Sunisa Lee, mas sem Simone Biles na disputa, afastada. O segundo lugar de agora vale ouro – porque Biles é de outro mundo.

    Com o resultado, Rebeca é a primeira mulher do Brasil com quatro medalhas olímpicas. A chance de ultrapassar ou igualar os velejadores Robert Scheidt e Torben Grael, que têm cinco medalhas, é grande: a paulista ainda disputa as finais do salto, do solo e das traves.

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