DOHA – A Copa do Mundo do Catar começou errada – muito antes do pontapé inicial. Há denúncias ainda sendo investigadas em torno de suposta compra de votos promovida por cartolas da Fifa. A construção de sete estádios novinhos em folha consumiu pelo menos 6 bilhões de dólares. Um deles, feito com contêineres, será desmontado, uma boa ideia. O restante tem outro destino: camelos brancos no meio do deserto. O total de gastos, incluindo a rede de metrô e hotéis, chegou a inacreditáveis 200 bilhões de dólares – a título de comparação, o Brasil desembolsou 10 bilhões de dólares em 2014. Some-se à dinheirama o constrangimento, para dizer o mínimo, de um torneio promovido por uma monarquia absolutista que abusa dos direitos humanos e condena todo movimento de diversidade sexual. Tudo errado. Além, é claro, da esquisitice de o maior torneio de futebol do mundo ser realizado em um país de cultura futebolística próximo do zero. Mas como o dinheiro compra tudo, e quem há de dizer o contrário, o Catar deu um jeito de primeiro adquirir o PSG de Messi, Mbappé e Neymar. Levou também a Copa e, pronto, eis um belo negócio como outro qualquer afeito aos petrodólares.
Que charme, enfim, teria um Mundial tão sem alma? Estive pessoalmente em outras seis Copas. As da Itália (1990), Alemanha (2006), Brasil (2014) e Rússia (2018) foram realizadas em países de populações que respiram futebol, e o ambiente caloroso serpenteava pelas ruas. Nos Estados Unidos (1994), que mal engatinhava no esporte bretão, uma das partidas chegou a ser interrompida no meio para a transmissão ao vivo da perseguição do carro de O.J. Simpson, em fuga, e a Copa não voltaria mais a ter o destaque imaginado. Sumiu, até porque os moradores achavam bizarro algumas partidas terminarem sem vencedor e, muitas vezes, sem gol nenhum. Na África do Sul (2010), o carisma de Nelson Mandela, já muito idoso, roubou a cena. Em todos esses torneios – à exceção talvez dos Estados Unidos – o clima das cidades combinava com o do futebol, não havia desencontros.
No Catar, a aposta era uma Copa artificial como é parte imensa do país. Em Doha, há um bairro que reproduz os bulevares de Paris. Em um outro canto foi criada uma versão da Itália. Os arranha-céus encomendados a arquitetos de renome parecem um jogo de lego. O Museu Islâmico, é verdade, como exceção, é um espetáculo projetado pelo arquiteto Ieoh Ming Pei, o mesmo da Pirâmide do Louvre. É novo, sem dúvida, mas ao menos abriga um pedaço da história catari, lugar que até muito recentemente, no início do século XX, era apenas um entreposto pesqueiro. Os petrodólares apagaram a história para o nascimento de uma Disneylândia no deserto.
Contudo, apesar de tanta artificialidade, da cara de Las Vegas que parece não abandonar o horizonte, a Copa do Mundo do Catar salvou-se graças ao que há de mais saudável e necessário na civilização: a diversidade, o choque de civilizações. Gente, enfim. O povo nas ruas ( e nem mesmo nos estádios, porque os ingressos eram caríssimos) fez toda a diferença. E o que era para ser uma geladeira de emoção se transformou em festa extraordinária. Não seria absurdo dizer que, nesse aspecto, o do calor humano, o Catar do inverno de novembro e dezembro superou todas as Copas desde 1990 – ao menos as que estive e consigo lembrar. Mérito, sobretudo, dos torcedores de países vizinhos e de culto religioso próximo ao do Catar. Quem há de esquecer a algazarra da turma marroquina? A felicidade dos tunisianos e dos sauditas? A alegria dos senegaleses e, claro, dos cataris, como se vivessem um estado de sítio ao avesso, um tempo de liberdade? Como não registrar as bandeiras da Palestina, tratadas como símbolo de um movimento de pan-arabismo que parecia sumido e voltou na forma de camisas de futebol? O Soul Waqif, o mercado central de Doha, não dormiu, com música, dança e narguilé, em impressionante irmandade da primeira Copa do Oriente Médio. Houve uma exceção em meio ao espetáculo barulhento desse pedaço do mundo, um intruso entre o grupo do Islã: os hinchas da Argentina anunciando que…”en Argentina nací, tierra de Diego y Lionel, de los pibes de Malvinas que jamás olvidaré”.
Que lição tirar? Os torcedores sem lenço nem documento é que fazem a diferença, não nos esqueçamos deles. Há décadas as Copas do Mundo são padronizadas pela Fifa – para quem está nos estádios ou diante da televisão, parece tudo igual, uniformizado, padronizado. Uma arena de São Petersburgo tem o jeito do Lusail, que se parece com o Maracanã reformado etc… Aí vem a malta, a ralé, a escumalha, aqueles que costumam ser apartados de tudo, e a história muda. Não se trata, é claro, dos torcedores ricos de países distantes que puderam chegar ao Catar (e lembre-se que, na torcida brasileira havia pouquíssimos negros; entre os argentinos, também). A euforia veio de quem não foi convidado.