A pergunta é incômoda, dado o absurdo da improbabilidade e o soco na ética, mas precisa ser feita: e se o doping fosse liberado na Olimpíada? É indagação que ganhou temperatura com um ruidoso comunicado feito recentemente pelo empresário australiano Aron D’Souza. Ele anunciou a realização, até o fim deste ano, do que batizou de Enhanced Games (Jogos Aprimorados). Na competição, não haveria testagem alguma para substâncias químicas em competições de cinco modalidades: atletismo, natação, levantamento de peso, ginástica artística e lutas. O site de divulgação do torneio vai direto ao ponto: “A cada Olimpíada, outro grupo de atletas corajosos estabelece novos recordes mundiais apenas para ter as medalhas revogadas, as carreiras suspensas e os nomes arrastados para a lama. É hora de acabar com esse ciclo opressivo”. Um vídeo de propaganda aumenta a aposta, ao mostrar um velocista que, supostamente, teria batido o recorde mundial de Usain Bolt nos 100 metros rasos. A voz em off proclama, como manifesto: “Ele desbloqueou o verdadeiro potencial atlético de seu corpo, mas o mundo não está pronto para ele. Ele foi difamado. Ele será vingado”.
A provocação atraiu interesse. Segundo D’Souza, mais de 350 esportistas o procuraram para poder participar do evento. O nadador australiano James Magnussen aceitou uma proposta de 1 milhão de dólares, feita por uma fintech, para tomar medicamentos proibidos e tentar vencer a marca mundial do brasileiro Cesar Cielo nos 50 metros. Um suposto “conselho esportivo” é formado por quatro atletas olímpicos. O investimento vem de nomes grandes do Vale do Silício que adoram aparecer e não hesitam em andar fora do trilho. Um deles é Peter Thiel, um dos fundadores do PayPal e alavancador dos primórdios do Facebook. Outro tubarão é Balaji Srinivasan, ex-diretor de tecnologia da casa de câmbio Coinbase, amante dos riscos, não importa de onde venham.
A tese central do anúncio dos Enhanced Games é simples: como a briga entre o doping e os laboratórios é briga de gato e rato sem fim, e com a contrafação sempre na frente, o melhor seria tomar a estrada do “liberou geral”. Eis um resumo do raciocínio de D’Souza ao desenhar o futuro esportivo, como se fosse salto científico: “Se você for aos cinemas, ninguém mais se interessará por histórias do passado”. O plano, é natural, produziu grita imediata. A VEJA, o Comitê Olímpico Internacional, o COI, tratou o assunto como estupidez. “Se quisermos destruir qualquer conceito de fair play e competição leal no esporte, eis aí uma boa maneira de fazê-lo. Pior do que isso, nenhum pai desejaria ver o seu filho competir em formato tão prejudicial, no qual as drogas que melhoram o desempenho são parte central do conceito. A ideia de ‘indivíduos soberanos’, promovida pelos apoiantes destes ‘Jogos Aprimorados’, significa que não existem regras ou valores. Isto está completamente em desacordo com a ideia e os valores dos Jogos Olímpicos.”
É posição sensata e necessária. Contudo, convém não desdenhar dos problemas a que a ideia maluca encaminha. É hipocrisia imaginar que os controles atuais sejam suficientes para afastar a desonestidade. Tome-se como exemplo recente a denúncia, feita pelo jornal The New York Times, de que 23 nadadores chineses flagrados no doping foram autorizados a competir nos Jogos de Tóquio, em 2021, em decisão do governo e com desleixo da agência mundial antidopagem, a Wada. Os chineses e as autoridades científicas negam tudo, é claro. Ainda assim, a alegação da turma de D’Souza de que os Enhanced seriam democráticos, ao pôr em pé de igualdade todos os países, é balela. “Levantar a proibição de doping proporcionaria vantagens competitivas adicionais aos atletas que representam superpotências econômicas como os EUA e a China”, diz William Devine, pesquisador da área de Ética no Esporte da Universidade Swansea.
Não há dúvida, ainda que a tese dos jogos “livres” faça pensar: não pode. Não há como achar que vitórias como a do canadense Ben Johnson, em 1988, nos 100 metros, possam representar um avanço da humanidade. E nem mesmo há como achar positivo o esforço sobre-humano do vencedor da longínqua maratona de 1904,o americano Thomas Hicks, que engoliu uma mistura de estricnina — também conhecida como veneno de rato — e clara de ovo crua, interpretadas, já naquele tempo, como estimulantes energéticos. E pior: na chegada, ele ainda foi carregado por dois membros de sua equipe. A utopia bonita seria outra, embora improvável: Olimpíada sem doping algum, simples assim.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891