O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.
Desde que o telégrafo, o tear mecânico e a máquina a vapor se transformaram em realidade, vivemos uma corrida do ouro em busca de novas descobertas. Da Inglaterra, chegam notícias de invenções atreladas à matemática. Charles Babbage, um professor, filósofo e engenheiro mecânico de 30 anos, promete criar uma máquina de calcular superpoderosa. A engenhoca, batizada por ele de máquina diferencial, tem como propósito resolver equações algébricas usando a mesma lógica da Revolução Industrial: fragmentar o trabalho em tarefas pequenas e fáceis, executáveis numa linha de montagem. Será, acredita ele, um avanço em relação à Pascalina, desenvolvida nos anos 1640 pelo também matemático e filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662).
Pascal tinha 19 anos quando bolou a primeira versão de uma máquina aritmética, com o objetivo de abreviar o tedioso trabalho do pai, fiscal de impostos. A roda metálica radiada, com os algarismos de 0 a 9 inscritos ao longo da circunferência, é usada ainda hoje para somar ou subtrair (com direito até a uma armação para executar o “vai 1” ou o “tira 1” sempre que necessários, como nas contas de 19+25 ou 62-17). Três décadas mais tarde, outro matemático e filósofo, o alemão Gottfried Leibniz (1646-1716) tentou aperfeiçoar o mecanismo do francês usando um “contador dentado” para realizar as operações de multiplicação e divisão. O projeto não foi adiante porque Leibniz não tinha as noções de engenharia necessárias para a missão.
Agora, Babbage se propõe a superar esse desafio combinando o conhecimento das teorias científicas com o gênio mecânico. Na verdade, sua ambição é muito maior do que a da Roda de Leibniz. O inglês sonha com um equipamento capaz de ir além das quatro operações e também tabular logaritmos, senos, cossenos e tangentes, para aproximar as funções logarítmicas e trigonométricas. Sua inspiração vem do francês Gaspard de Prony. Nos anos 1790, ele conseguiu criar tabelas de logaritmos e funções trigonométricas reduzindo as operações a passos muito simples: apenas soma e subtração. Seu trabalho não envolvia nenhuma máquina, ao contrário. O que ele imaginou foi uma espécie de linha de montagem para que pessoas com pouco conhecimento matemático pudessem chegar a resultados mais complexos. Cada parte dessa linha se ocupa de apenas um pedaço dos cálculos — que são repassados, etapa por etapa, para o grupo seguinte de operadores.
Depois de uma viagem a Paris, onde conheceu o método, Babbage escreveu: “Tive, de súbito, a ideia de aplicá-lo ao imenso trabalho que me sobrecarrega e produzir logaritmos da mesma forma como se produzem alfinetes”. Segundo ele, é possível mecanizar esse processo, o que é algo (há de se reconhecer) extremamente pretensioso. Já pensou usar tal engenho para cálculos de potenciação, funções polinomiais ou equações diferenciais? Que tal uma máquina capaz de resolver problemas mais rapidamente que um ser humano? É um desatino. Babbage garante que não.
Ele nasceu em Londres, no seio de uma família abastada e letrada. Seu pai, Benjamin, é sócio do banco Praed’s e, desde 1808, administra as terras próximas à igreja de St. Michael, em Teignmouth, no sudoeste da Inglaterra. O dinheiro da família permitiu que o pequeno Charles recebesse instrução de qualidade tanto em escolas quanto por meio de tutores. Aos 8 anos, uma febre quase lhe custou a vida, e os pais decidiram que “não era para exigir demais de seu cérebro”. Depois de algum tempo em casa, com professores particulares, passou a integrar a academia Holmwood, em Middlesex. Ali, uma biblioteca bem abastecida despertou seu amor pelos cálculos.
Desde muito cedo, interessou-se por máquinas capazes de desempenhar tarefas humanas. A mãe, Betsy, costumava levá-lo a salas de exposições e museus para ver as maravilhas que começavam a brotar em Londres no começo do novo século. Certa vez, em Hanover Square, o proprietário convidou-o a visitar sua oficina, onde guardava bonecos mecânicos, também conhecido como autômatos. Um deles era uma bailarina prateada cujos braços se moviam com graça, tendo em uma das mãos um pássaro que agitava a cauda, batia as asas e abria o bico. O menino ficou encantado. “Os olhos dela eram cheios de imaginação”, disse ele, nas palavras da mãe.
Fez a faculdade no Trinity College, em Cambridge, e logo depois de formado se tornou professor de matemática da prestigiosa instituição. Foi lá que criou, em 1812, a Sociedade Analítica, junto com os colegas John Herschel e George Peacock. Desapontados com a forma de ensinar a disciplina na universidade, fundaram o clube para tentar convencer os professores a trocar a notação do cálculo diferencial baseado em pontos, criada por Isaac Newton (ex-aluno de Cambridge), em favor da notação D, criada por Leibniz para representar aumentos infinitesimais. Certa feita, Babbage estava na sala da Sociedade Analítica, trabalhando em uma tabela de logaritmos, quando Herschel perguntou-lhe no que estava pensando. “Queria que estes cálculos tivessem sido resolvidos a vapor”. Ao que o amigo respondeu: “Isso é bem possível”. A ideia de desenvolver um método mecânico para tabular logaritmos ficou em sua cabeça e, desde o ano passado, Babbage vem se dedicando à construção desse sonho.
O eminente professor, que é membro da Royal Society de Londres desde 1816, é cada vez mais reconhecido como um expoente no circuito social de Londres. Principalmente por sua paixão em mostrar seu trabalho a cavalheiros de fraque e damas em longos vestidos de brocado, escritores, industriais, poetas, atores, políticos, exploradores, botânicos e outros “cientistas”, neologismo que ele e seus amigos criaram e que traduz esses tempos feéricos em que vivemos. Para muitos, foi justamente a ciência que lhe garantiu o reconhecimento entre a nobreza e a sociedade londrinas.
É difícil, para um cidadão de nosso século, imaginar os usos da máquina diferencial. Ela poderia servir a um general como foi Napoleão para analisar as variáveis de uma batalha? As indústrias teriam algum benefício com ela? Outros sonham com mundos ainda mais fantásticos, com máquinas “pensantes”. Há quem diga que Charles Babbage esteja muito além do nosso tempo. Por enquanto, ele é apenas um visionário que espera viver o suficiente para transformar seu ambicioso projeto em realidade. Quer, enfim, deixar sua marca no universo.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805