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O gosto à mesa de Dom Pedro: canja de galinha e virado de feijão

As preferências culinárias da família real podem ajudar a identificar a identidade nacional à mesa

Por Da Redação Atualizado em 4 jun 2024, 12h20 - Publicado em 3 set 2022, 07h00

O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.

Quando deixou a galope o Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, iniciando a viagem na qual proclamou a independência do Brasil, no sábado 7, o príncipe regente dom Pedro de Bragança prometeu suportar os reveses do caminho. Foi para São Paulo com um roteiro predeterminado, fazendo paradas em fazendas ao longo do caminho. Mas, sabendo que teria surpresas no trajeto, comprometeu-se a pernoitar ao relento e alimentar-se do que fosse disponível. “Dormirei sobre uma esteira e farei de travesseiro uma canastra”, prometeu dom Pedro, humildemente. “Alimentar-me-ei de feijão e, à falta de pão, não desdenharei a farinha de mandioca.”

Sua Alteza Real alternou lombo de cavalo com lombo de mula, animal requisitado pela grande resistência. Por sinal, foi a montaria com a qual, 22 anos atrás, Napoleão Bonaparte guiou o Exército francês através dos Alpes, com o propósito de surpreender as tropas austríacas na Itália. Dom Pedro chegou a São Paulo depois de percorrer o Vale do Paraíba, os caminhos acidentados da Serra do Mar e matas fechadas, morros e baixadas, rios e córregos (leia mais a respeito da viagem na pág. 24). Alguns trechos do caminho já se encontram colonizados, não só por fazendas e lavouras de café e cana-de-açúcar, mas com vilas prósperas; outros permanecem desabitados e inóspitos. A viagem foi iniciada com uma pequena comitiva, que aumentou ao longo do caminho. Na saída do Palácio de São Cristóvão, acompanharam Sua Alteza Real os amigos Francisco de Castro e Canto e Melo e Luís Saldanha da Gama, o fidalgo português Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, que os mexericos apontam como seu secretário particular e alcoviteiro (leia na seção Radar).

Apesar de ter nascido em berço de ouro, no reino de Portugal, o filho mais velho de dom João VI e dona Carlota Joaquina foi criado solto no Rio de Janeiro, onde aportou com 9 anos. Brincou com moleques nobres, ricos, pobres e filhos de escravos. Assimilou os hábitos e costumes do nosso povo. Tanto é verdade que, à mesa, o cardápio de Sua Alteza Real é genuinamente brasileiro. Isso ocorre em São Cristóvão, onde reside com a esposa, a arquiduquesa dona Maria Leopoldina da Áustria, e os dois filhos do casal, a princesa dona Maria da Glória e a recém-nascida princesa dona Januária — um terceiro filho morreu menino (leia nas Páginas Amarelas com Leopoldina).

Dom Pedro muitas vezes ensaia, mas apenas ensaia, dispensar o salão do comedor central do Palácio de São Cristóvão, onde os alimentos são cuidadosamente elaborados — incomoda-lhe um hábito segundo o qual somente os homens participam das refeições públicas e diárias, assistidas pelos membros da Corte. As mulheres costumam almoçar e jantar apartadas, em seus próprios aposentos. O príncipe tem especial apreço não só pelo feijão com farinha de mandioca, mas ainda por toucinho da terra (sem nenhuma parte magra), carne assada no forno, na brasa ou cozida com legumes, batatas, couves e pepino, frango frito em pedaços, galinha com arroz e sopa de caldo grosso. Afinal, dom Pedro é bom de mesa. Mas, apesar do grande apetite, nunca engordou demais. Pesa em torno de 75 quilos. Também não pode ser considerado alto, pois mede entre 1,66 e 1,73 metro.

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NAS FAZENDAS E PRATOS - Cana-de-açúcar: produto que serviu de atalho para a colonização -
NAS FAZENDAS E PRATOS - Cana-de-açúcar: produto que serviu de atalho para a colonização – (Joaquim Cândido Guillobel/Pinacoteca do Estado de São Paulo/.)

Outra predileção de Sua Alteza Real é a canja de galinha, unanimidade gastronômica na família Bragança, que tanto dignifica. Conforme a voz do povo, a predileção serve inclusive para teste de filiação. O Bragança que recusar uma canja não terá nas veias o sangue azul da família. Dom Miguel, irmão mais novo de dom Pedro, seria um exemplo ilustrativo. Cochicha-se na Corte do Rio de Janeiro que o rei dom João VI não é seu pai, apesar de legitimado pelo soberano. A mãe é obviamente dona Carlota Joaquina. Entretanto, os mexeriqueiros da Corte do Rio de Janeiro divergem sobre a paternidade de dom Miguel. Alguns dizem ser filho do sexto marquês de Marialva, Pedro José de Meneses Coutinho; outros, de João dos Santos, cocheiro e jardineiro do Palácio do Ramalhão, na freguesia portuguesa de Sintra. Carlota Joaquina morou ali antes de a Corte lusitana transferir-se para o Brasil, em 1808. Observam também que dom Miguel não tem semelhança física com o resto da descendência de dom João VI; e, enfim, que não aprecia canja de galinha.

A excelente forma física de dom Pedro, aos 23 anos, demonstrada na viagem a São Paulo, depois de percorrer uma distância de quase 600 quilômetros, foi sem dúvida exercitada no Rio de Janeiro. Sua Alteza Real caçou nos matos em volta, pescou em riachos e montou cavalos e mulas com os amigos; disputou luta livre e bola de borracha; soltou papagaio aos ares, puxou a corda do pião. Graças a esse treinamento espontâneo, adquiriu o porte atlético, o caráter altivo e arrebatado que esbanja atualmente.

Um escritor baiano que o observou de perto descreveu-o como um homem corado, com o sangue a rebentar nas faces, “os lábios grossos do pai (dom João VI), os olhos vivos da mãe (dona Carlota Joaquina) e um robusto braço plebeu (…) para derrubar touros no picadeiro”. Infelizmente, dom Pedro sofre de epilepsia. Por ocasião das comemorações do aniversário de dom João VI em 1816, todos presenciaram um dos seus ataques convulsivos na revista às tropas. Mas a epilepsia jamais afetou a disposição inabalável de Sua Alteza Real, que mostra desconhecer a fadiga.

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A informalidade de dom Pedro à mesa não impediu que, no caminho para São Paulo, fosse homenageado com banquetes fartos, um dos quais no último dia 17 de agosto, na Fazenda Pau d’Alho, em São José do Barreiro, no Vale do Paraíba. A propriedade pertence ao coronel João Ferreira de Sousa, dono de cafezais a perder de vista. A comida preparada para o príncipe regente aguardava-o em uma mesa enorme, coberta por toalha de linho, com barra de rendas balançantes. VEJA apurou que as louças eram inglesas, os copos, de cristal francês, e os talheres, de prata portuguesa. Havia no centro um leitão dourado no forno, deitado em travessa azul, com um limão atravessado na boca. Ao lado dessa iguaria vale-paraibana encontravam-se arrozes, frangos, guisados e um soberbo virado, prato puro-sangue da cozinha paulista.

AO GOSTO DE BACO - Volume: apenas em 1822 o Brasil importará até 10 000 pipas de vinho do Porto -
AO GOSTO DE BACO - Volume: apenas em 1822 o Brasil importará até 10 000 pipas de vinho do Porto – (iStock/Getty Images)

Mas o príncipe regente não saboreou a refeição logo ao chegar. Seu anfitrião se levantou de madrugada e saiu a cavalo. Queria encontrá-lo ainda no caminho, para recepcioná-lo com os salamaleques de praxe. Na cozinha, as mucamas, ou melhor, as escravas incumbidas dos serviços caseiros, davam os retoques finais no banquete, comandadas por dona Maria Rosa de Jesus, a dona da casa. De repente, apareceu na sede da Fazenda Pau d’Alho, batendo palmas, um moço empoeirado e muito simpático. Não se identificou como dom Pedro. Disse apenas pertencer à comitiva do príncipe regente. Afirmou ter deixado os companheiros para trás porque sentia fome. VEJA descobriu que, na verdade, apostou corrida com eles. Exímio cavaleiro, deixou-os para trás. Com educação, o moço pediu a dona Maria Rosa que lhe antecipasse um prato de comida. Era hora do jantar, entre meio-dia e 2 da tarde. São quatro, como sabemos, as refeições dos brasileiros, nobres ou plebeus. A primeira, o almoço, é quando acordam. Entre meio-dia e 2 horas da tarde serve-se o jantar. Na metade da tarde, saboreia-se a merenda. Depois das 9 horas da noite, é a vez da ceia.

Dona Maria Rosa atendeu o moço impondo uma condição. Ele teria de comer na cozinha. A sala do banquete aguardaria intocada. Dom Pedro começou a jantar em uma mesinha de canto, saboreando um guisado, à base de pedaços graúdos (não picados) de carne. Estava acomodado naquele lugar discreto, divertindo-se com a situação que criou, quando apareceu o coronel João Ferreira de Sousa. Embaraçado, mas cheio de orgulho pela visita do príncipe regente, o dono da Fazenda Pau d’Alho beijou-lhe a mão. Em seguida, convidou-­o a mudar para a sala do banquete, onde os manjares foram liberados.

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Outro episódio que ficará na lembrança dos brasileiros ocorreu a 19 de agosto na Vila de Guaratinguetá, sempre no Vale do Paraíba. Recebido pelo português Manoel José de Melo, dono de terras sem fim, boiada gorda e engenho de açúcar portentoso, o príncipe regente surpreendeu-se ao encontrar sobre a mesa da casa uma baixela luzidia de ouro maciço. Sempre bem-­humorado, elogiou o anfitrião pela raridade, ouvindo a resposta: “As posses dão, Real Senhor”. VEJA descobriu que, como todas as comilanças das paradas da viagem, foram servidos guisados e o indispensável virado de feijão (leia a receita abaixo).

No Vale do Paraíba, também ofereceram ao príncipe regente várias especialidades culinárias da região: bolinhos de massa de mandioca ou de farinha de milho recheados com lambari ou carne, caldo de palmito, inhame frito na manteiga, paçoca de carne, carne-seca ensopada, batata, pepino e pimenta; e pão de ló, doces de ovos, goiabada, pudim de pão dormido, arroz-doce e furrundum (cidra ralada ou mamão verde idem, gengibre, rapadura derretida ou açúcar mascavo).

Pelas circunstâncias conjugais, e não pelo gosto pessoal, dom Pedro às vezes depara no Palácio de São Cristóvão com pratos de inspiração austro-germânica. A responsável pela mudança no cardápio é dona Leopoldina. Quando se mudou da Áustria para o Brasil, em 1817, para se casar com dom Pedro, trouxe uma bagagem composta de quarenta caixas “da altura de um homem”. Desembarcou no Rio de Janeiro com o enxoval, livros, presentes para os membros da família real portuguesa e ingredientes da culinária austro-germânica: repolho, salmão salgado e carne de porco na banha.

Em contrapartida, dona Leopoldina tem um marido que aprecia cachaça, embora moderadamente. Diz-se que celebrou a independência com um cálice de cachaça artesanal. Dom Pedro também bebe um copo de vinho do Porto no final das refeições. Os Bragança sempre evitaram os excessos etílicos. Entretanto, pela previsão dos vinhateiros lusitanos, somente neste ano de 1822 o Brasil importará entre 8 000 e 10 000 pipas de vinho do Porto. O volume não chega a ser exagerado, porém se destina sobretudo ao Rio de Janeiro.

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Dom Pedro aprendeu a apreciar cachaça com os amigos cariocas. Sua mãe também pode ter influenciado. Até o ano passado, quando dona Carlota Joaquina regressou a Portugal, um volume apreciável de cachaça destinava-se a sua cozinha e quarto. Ela se socorria da aguardente de cana-de-açúcar para suportar o calor do Rio de Janeiro, que detestava. Mandava preparar coquetéis de cachaça com suco de fruta e açúcar. É verdade que a cachaça também serve para fazer licores e conservar compotas de frutas.

Convém lembrar que Carlota Joaquina e dom João VI, em sua recente estada no Brasil, sempre dispensaram os banquetes com muita pompa, à moda das monarquias europeias e da ascendente classe burguesa, nos quais são consumidos vinhos e licores finos. O mesmo continuou a fazer dom Pedro e a Corte do Rio de Janeiro. Demonstraram preferência pelos rituais visuais. Encomendam missas, te-déuns e procissões, fazem discursos e aclamações.

Com a longa viagem equestre a São Paulo, Sua Alteza Real conquistou o direito de ser chamado de príncipe cavaleiro. Já a comida que o alimentou no caminho pode vir a ser reconhecida no futuro como a certidão de nascimento da cozinha brasileira de ascendência portuguesa, com influência indígena e africana, formadora de uma identidade nacional.

Prato patriótico

As fazendas que receberam dom Pedro no caminho para São Paulo acolheram-no à mesa com pratos típicos da província. Um dos mais oferecidos foi o virado de feijão. Sua receita é deliciosa e substanciosa. Refoga-se o feijão já cozido em cebola, alho e gordura. Acrescentam-se sal e um pouco do próprio caldo do feijão. Engrossa-se com farinha de milho ou de mandioca, deixando-se úmido, nunca seco. Serve-se com torresmo e ovo estrelado, de preferência com a gema mole. Há também variações ricas do prato, nas quais se incorporam bisteca ou costeleta suína frita, linguiça frita, banana empanada e frita, couve cortada em tiras e refogada na gordura; e mesmo arroz.

Rende 6 porções

INGREDIENTES
• 500g de feijão-mulatinho bem cozido
• 3 xícaras (chá) do caldo que cozinhou o feijão. Ou mais, se for necessário
• 4 colheres (sopa) de gordura de porco
• 2 dentes de alho bem socados
• 1 cebola média bem picada
• 4 colheres (sopa) de cebolinha verde bem picada
• Farinha de mandioca (ou de milho) quanto baste
• Sal e pimenta-do-reino moída a gosto

ACOMPANHAMENTOS
• Torresmo
• Linguiça
• Ovos estrelados
• Arroz branco

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PREPARO
1 – Em uma panela de preferência de ferro, aqueça a gordura de porco.
2 – Adicione o alho, a cebola e misture, cuidando para esses temperos não queimarem.
3 – Incorpore os grãos de feijão e mexa muito bem, para o feijão pegar gosto. Introduza a cebolinha verde e continue mexendo.
4 – Depois de bem misturado, coloque o caldo do feijão e tempere com sal e pimenta. Mantenha no fogo por mais alguns minutos, para o caldo encorpar um pouco, cuidando para não secar.
5 – Antes de servir, despeje a farinha de mandioca (ou de milho) no feijão, lentamente, mexendo sempre, em fogo brando. O virado deve ficar úmido, nunca seco.
6 – Leve à mesa com os acompanhamentos.

Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805

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