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Cultura

Mulher-Maravilha: a mitologia clássica e a mitologia pop

‘Tão amável quanto Afrodite, tão sábia quanto Atena – com a velocidade de Mercúrio e a força de Hércules’, era a descrição da amazona em sua primeira HQ

por Lucas Almeida Atualizado em 5 jun 2017, 12h25 - Publicado em
3 jun 2017
06h00

‘Tão amável quanto Afrodite, tão sábia quanto Atena – com a velocidade de Mercúrio e a força de Hércules’, era a descrição da amazona em sua primeira HQ

Os mitos gregos foram fonte não apenas para as crenças que permearam a vida na Roma Antiga, de mitologia contígua à da Grécia Clássica, mas para boa parte da cultura que se compôs no Ocidente nos últimos milênios, acrescida da contribuição judaico-cristã. Enraizados na cultura ocidental, os mitos difundidos pelos helenos, como também eram chamados os gregos, se tornaram temas de pintores, de escritores e até da cultura pop. Nos quadrinhos, diversos personagens têm dívida com os gregos, como Elektra, da Marvel, Aquaman e em especial a Mulher-Maravilha, da rival DC Comics, personagem inspirada na lenda das amazonas, mulheres guerreiras citadas por Homero em dois cantos da Ilíada.

Hipólita, mãe de Diana, dá aula feminista em gibi
Hipólita, mãe de Diana, dá aula feminista em gibi (//Reprodução)

O criador da Mulher-Maravilha, o psicólogo e cineasta William Moulton Marston, teve a ideia de tomar emprestados elementos da mitologia grega, para a personagem, dentro de casa: ele se inspirou em conteúdos da esposa Elizabeth, que estudava grego na universidade, de acordo com Tim Hanley, autor do livro Wonder Woman Unbound: The Curious History of the World’s Most Famous Heroine (editora Paperback, Mulher-Maravilha Desvendada: A Curiosa História da Super-Heroína Mais Famosa do Mundo, em tradução livre), ainda sem tradução no Brasil.

“Certos elementos da cultura helênica casavam bem com as teorias de Marston e seus propósitos para a heroína”, diz Hanley a VEJA. Era o caso de uma sociedade matriarcal como a das amazonas: grande entusiasta do feminismo, Marston acreditava que, por seu poder de compaixão e sabedoria, as mulheres eram superiores aos homens e poderiam não apenas ser independentes deles, mas liderá-los, tomando as rédeas de seu destino e o poder do mundo.

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Outro pesquisador do universo da Mulher-Maravilha, Steve Korte, autor de uma série de quatro livros intitulada Wonder Woman Mithology (“Mitologia da Mulher-Maravilha” em tradução direta, editora Capstone, ainda sem versão no Brasil), conta que Marston chegou a definir a personagem em 1941 como “uma propaganda psicológica para o novo tipo de mulheres que deveriam governar o mundo”. A frase estava em um comunicado feito pelo autor para divulgar a heroína para a imprensa. No mesmo texto, ele dizia que “não há amor suficiente em organismos masculinos para governar esse planeta pacificamente”.

Hipólita e Afrodite criam Diana, feita a partir do barro pela amazona e avivada pela deusa, em uma das versões de sua origem nos quadrinhos
Hipólita e Afrodite criam Diana, feita a partir do barro pela amazona e avivada pela deusa, em uma das versões de sua origem nos quadrinhos (//Reprodução/Reprodução)
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As amazonas

Representação das amazonas clássicas, presentes na mitologia, em ‘Ilíada’, de Homero, e em ‘História’, de Heródoto
Representação das amazonas clássicas, presentes na mitologia, em ‘Ilíada’, de Homero, e em ‘História’, de Heródoto (Domínio público/Reprodução)

O empréstimo, é claro, teve a sua dose de subversão, como é praxe nas criações artísticas. Na mitologia, as amazonas eram descritas como guerreiras selvagens, que se ligavam aos homens apenas para procriação. No filme de Patty Jenkins, a Diana Prince vivida por Gal Gadot chega a dizer a Steve Trevor (Chris Pine) que leu bastante sobre sexo na Ilha Paraíso e por isso sabia que o papel do homem no prazer era ínfimo. Mas no longa, assim como nos quadrinhos, os dois se apaixonam e vivem um romance que desmente a conclusão do livro.

Outra mudança feita por Marston diz respeito ao corpo das amazonas. Em grego, o nome significa “sem seio”, termo que se refere à lenda de que elas extirpavam a mama direita para atirar melhor com arco e flecha. Mas, nos desenhos, a protagonista, que era uma princesa amazona, aparece completa, por assim dizer, permitindo aos gibis explorar a sensualidade inerente às heroínas dos quadrinhos – recurso que o autor via como arma para seduzir leitores e deixá-los expostos aos seus pensamentos.

Na literatura grega, as amazonas podem ser encontradas na Ilíada, de Homero (século VIII a.C.), e em História, de Heródoto (século V a.C.). O historiador as define como matadoras de homens. “As Amazonas, que os Citas chamam Aiórpatas, nome que os Gregos traduzem para Andróctones (que matam homens), pois aior em cita significa ‘homem’, e pata quer dizer ‘matar’”, diz Heródoto, em uma passagem do livro. Em outro trecho, ele define a cultura das amazonas de um modo que deve ter feito o feminista William Moulton Marston se retorcer de alegria. Em diálogo com os citas, as amazonas se definem como autônomas.

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“Não poderíamos — responderam as Amazonas — viver em boa harmonia com as mulheres do vosso país. Seus costumes são diferentes dos nossos: atiramos com o arco, lançamos o dardo, montamos a cavalo e não aprendemos os misteres próprios do nosso sexo. Vossas mulheres nada disso fazem e não se ocupam senão de trabalhos femininos. Não abandonam suas carretas, não vão à caça e nem se afastam do lar.”

Na Ilíada, as amazonas aparecem em luta contra os gregos, na Guerra de Troia. São citadas no Canto III e no Canto VI, no qual são abatidas pelos atenienses. “E deu cabo das amazonas varonis”, diz um dos versos sobre a luta. O poema épico ressoa o mito, segundo o qual Aquiles matou a rainha amazona, Pentesileia, irmã de Hipólita, em luta, e ficou admirado ao ver a sua beleza, já morta no chão.

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Mito x realidade

Themyscira, ou Ilha Paraíso, em quadrinho antigo da heroína
Themyscira, ou Ilha Paraíso, em quadrinho antigo da heroína (//Reprodução)

Cantadas por Homero e recontadas por gerações, as amazonas sempre foram tratadas como mitos, personagens sem conexão com a realidade, mas achados arqueológicos de 1998 mostraram que essas mulheres podem ter de fato existido. Pesquisadores russos e americanos encontraram em Pokrovka, cidade da Rússia próxima à fronteira com o Cazaquistão, cem túmulos do povo sármata, dos quais 15% eram de mulheres enterradas com armaduras, flechas de bronze, espadas e adagas. A descrição coincide com o texto do historiador grego Heródoto (século V a.C.), que no clássico História afirmava que as amazonas viviam na Sarmátia, antigo nome da região.

Os esqueletos ainda tinham pernas arqueadas, como as de quem anda a cavalo por muitos anos, e os bebês eram sempre sepultados com os homens, o que poderia indicar a vigência do matriarcado na área. Não há, porém, nenhuma comprovação das atividades que essas mulheres praticavam.

Panteão da HQ

Zeus convoca Diana a lutar ao lado de sua mulher, Hera
Zeus convoca Diana a lutar ao lado de sua mulher, Hera (//Reprodução)

Além de traços clássicos, a personagem Diana Prince tinha filiação mitológica. A princesa de Themyscira seria filha de Hipólita, a rainha das amazonas, e de Zeus, o deus dos deuses do Monte Olympo – ou, a depender da versão da história, esculpida em barro por Hipólita e avivada por um sopro de Zeus. Nas histórias em que era filha de Zeus, Diana era também irmã de Ares, o temível deus da guerra.

Ares, que reaparece no filme de Gal Gadot, exemplificaria, na visão de Marston, o pendor dos homens para fazer guerras necessariamente estúpidas, pendor que se explicava pelo fato de serem menos evoluídos do que as mulheres.

Novos e velhos mitos

Chris Hemsworth em ‘Thor: Ragnarok’
Chris Hemsworth em ‘Thor: Ragnarok’ (Reprodução/ Entertainment Weekly/Reprodução)

Outras mitologias vêm fornecendo conteúdo para os quadrinhos. O Thor, da Marvel, por exemplo, foi decalcado do deus nórdico que é filho de Odin, o ser supremo do panteão idolatrado pelos antigos vikings, e irmão de Loki, o amalucado e dúbio deus que também ganhou espaço nos quadrinhos e no cinema. E Aquaman se calca na lenda de Atlântida, a cidade submersa.

A própria Mulher-Maravilha faz uso de elementos de culturas. Exemplos dessa pluralidade podem ser vistos no personagem Rama, um flerte da heroína inspirado em uma das representações do deus hindu Vishnu. A deusa egípcia Iris também marcou presença dos gibis de Diana Prince, através de uma heroína chamada Adrianna Tomaz.

Mitos, à sua maneira, da cultura pop, os personagens dos quadrinhos podem ser porta de entrada para que muitos conheçam o mundo dos mitos. A cultura popular contribui assim, para repassar as histórias a outras gerações. Além de, como ressalta Steve Korte, se valer da força desses mitos para ganhar corpo. “São as histórias mais poderosas contadas pela humanidade”, diz Steve Korte. Diana Prince jamais duvidaria.

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