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Luisa Mell, a melhor amiga dos bichos

por Ana Weiss Atualizado em 22 mar 2019, 17h04 - Publicado em
22 mar 2019
07h00

Ex-apresentadora transformou uma carreira claudicante na TV em ativismo real, salvando milhares de animais e 'convertendo' famosos e anônimos ao veganismo

Enzo não tinha completado 4 anos de idade quando, num impulso, quase comeu um docinho numa festa de aniversário. Foi lembrado pela mãe de que a escolha era dele: matar a vontade da guloseima ou ajudar a evitar que bezerros continuem sendo privados da convivência familiar para que humanos bebam leite de vaca. A muito jovem consciência falou mais alto e o menino se manteve na dieta vegana que o acompanha desde antes de nascer.

Na fase em que ainda era Marina Zatz de Camargo Zaborowsky, Luisa Mell, mãe de Enzo, não pensava (muito) sobre o que comia e os únicos animais que lhe importavam eram, nas suas palavras, os “gatos humanos”. Hoje, já no papel de uma das ativistas dos direitos dos animais mais ouvidas (e vistas) no país – 2,9 milhões de seguidores, só no Instagram –, ela comemora conversões de carnívoros em veganos.

Uma de suas últimas catequizadas é a megaestrela Anitta, que Luisa conta “praticamente ter tirado de cima” de um prato de feijoada. “Viajamos juntas no final do ano. Falamos sobre a responsabilidade enorme de ter 36 milhões de seguidores (Anitta, no Instagram), conversamos muito sobre o que queremos para o mundo e o que estamos fazendo a respeito. Ela era uma verdadeira churrasqueira até assistir o Cowspiracy (documentário que denuncia as crueldades e malefícios da atividade agropecuária). Está firmíssima na dieta do bem”, festeja a ex-apresentadora.

Nas redes sociais, Anitta diz que começou com a alimentação, mas pretende desenvolver mais a nova atitude, que também deve estar presente no vestuário e nos cosméticos. Luisa, o exemplo, baniu produtos de origem animal de sua vida: abriu mão de cremes “maravilhosos, mas testados em animais” e criou uma marca de sapatos veganos própria, a Vegano Shoes, que, segundo ela, ainda não dá lucro. “Mas não dá para ficar comprando sapatos Stella McCartney várias vezes por ano”, diz a ativista, em uma crítica ao ainda tímido mercado de vestuário “animal free” no Brasil. “Você não precisa virar uma hippie porque decidiu ser vegana”, ensina a paulista de 40 anos, pele perfeita e maquiagem sempre irretocável.

Anitta: amiga convertida ao veganismo
Anitta: amiga convertida ao veganismo (Reprodução/Instagram)

Luisa diz que servir de exemplo é uma missão maior até do que salvar animais – algo a que ela se dedica em tempo integral desde 2015, quando criou o instituto que leva seu nome, responsável hoje por resgates, às vezes dramáticos, de bichos em condições precárias. Segundo ela, o exemplo não é só para o filho e para as amigas célebres. “Adolescentes me procuram muito contando que mudaram suas vidas.”

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Uma das voluntárias da ONG, Lara Guedes Silveira foi uma das jovens influenciadas pela ativista. Ela estava na dúvida entre medicina humana e veterinária quando começou a seguir o perfil de Luisa. Comovida com o trabalho, passou a atuar em feiras de doações e encaminhamentos, como a dos animais resgatados do Canil Céu Azul, que levou a decisão da Petz, uma das maiores redes de comércio animal do país, a declarar o fim da venda de filhotes. Na ONG há um ano e meio, trocou o vegetarianismo pelo veganismo logo que começou o trabalho. “É um assunto recorrente do instituto, a questão da alimentação e do uso de produtos de origem animal”, conta ela, hoje aluna do curso de Medicina Veterinária na Universidade de São Paulo (USP). “A Luisa Mell já era uma inspiração antes mesmo de conhecê-la”, diz a estudante de 19 anos.

Para a defensora dos animais, servir de inspiração compensa toda a chacota e o preconceito que sofre por suas escolhas, colecionando ataques do público e, outras vezes, de colegas, como quando, há cinco anos, foi ofendida no ar pelo vocalista Roger Moreira no programa The Noite, do SBT. O músico perguntou à entrevistada de Danilo Gentili se ela era uma das idiotas que não usavam xampu. “Sou idiota, mas idiota do bem”, respondeu Luisa, rindo, e lembrando o vocalista do Ultraje A Rigor que lavava sim os cabelos, mas com produtos não testados em animais.

Preconceito

Luisa Mell aprendeu a lidar com preconceito bem antes de abraçar a causa animal. Ela chega a se desmanchar aos prantos ao vivo em um resgate de cachorros, mas, do bullying constante, ela ri. “Loira burra é um dos favoritos da torcida contra”, se diverte. Filha de mãe judia e pai cristão, se sentia discriminada desde a infância tanto dentro como fora da escola judaica pela mistura de seu sangue e não deixou que isso atrapalhasse uma adolescência festeira e uma juventude de muitas atividades. A morte da avó materna (Luisa, a quem ela homenageia com o nome artístico) obrigou a jovem estudante a reorganizar suas prioridades. A perda, brutal (um atropelamento na frente da casa onde morava no bairro de Santana), colocou a família em um estado depressivo – curado, ela conta, pela vira-lata que eles tinham, Dino.

Loira burra é um dos favoritos da torcida contra

Luisa Mell, sobre os comentários dos críticos
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No começo dos anos 2000 ganhou um programa escrito por seu pai, o roteirista José Papa de Camargo, motivado por amor à cadela que o ajudou a sair da depressão pela morte da mãe. O Late Show foi dado para a RedeTV!, emissora do então namorado de Luisa, Amilcare Dallevo. A apresentadora nunca escondeu que só conseguia emplacar resgates dramáticos de animais na grade porque tinha apoio do namorado, que a defendia, inclusive, da hostilidade dos colegas. Um ex-funcionário da emissora conta que era uma “bagunça aquilo tudo” e que ninguém tinha paciência com a apresentadora e sua irmã, que também era contratada pelo programa.

Marcela Zatz, irmã mais nova de Luisa, era quase uma adolescente na época que entrou para o staff do programa, dirigido por Sandra Zatz, mãe das duas. Hoje produtora audiovisual, ela lembra das dificuldades que a família-equipe sofreu enquanto o programa estava no ar. “A gente trabalhava muito e fazia o programa com quase nada de grana.” Contratada como estagiária, embora atuasse como editora do Late Show, ela se recorda com detalhes do dia em que o programa foi encerrado sem nenhuma explicação da emissora. “Saí da ilha de edição e, quando cheguei à nossa sala, eles estavam retirando tudo, fotos na parede, papéis, material de trabalho, móveis. Ela estava sendo simplesmente desmontada.” Marcela disse que não se sentiu surpresa, apesar da agressividade da cena. “Pouco tempo antes minha mãe tinha sido expulsa da emissora também sem nenhuma explicação. O dono tinha uma nova namorada e ela detestava a gente.”

“Eu pensava em me matar”

No livro Como os Animais Salvaram a Minha Vida, Luisa descreve como sua causa se tornou seu refúgio nos muitos reveses e injustiças que experimentou nesse período. Ela narra a perseguição que sofreu de Clodovil Hernandes, que afirmou, durante a gravação de seu programa, em 2005, que a colega de emissora seria “a nova Rita Cadillac” e que só lhe restaria fazer “filme pornográfico” quando envelhecesse. O apresentador do A Casa É Sua acabou demitido por causa do comentário, e Luisa conta em seu livro de memórias que, ressentido, ele passou a xingá-la “aos quatro ventos”. A ativista também lembra a demissão por telefone depois de seis anos no ar com o programa criado por seu pai e o cancelamento de um convite já anunciado pelo SBT. “Eu pensava em me matar. Olhava para os meus cães e desistia da ideia.”

Nesse período, a apresentadora conheceu o engenheiro Gilberto Zaborowsky, pai de Enzo e hoje seu marido. Quando ficou grávida, foi pressionada pela família a abandonar o veganismo. “As pessoas não cansam de questionar minhas escolhas, me tratar como louca, sempre e em vários lugares. Mas se é normal uma empresa como a Vale ainda estar funcionando apesar do crime indescritível que repetiu em Minas Gerais, então não sou normal mesmo.” Na sua casa, ninguém come bicho. “Nem a babá, que acaba de abandonar o peixe. Pelo menos, é o que ela me diz.”

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Luisa Mell, Enzo e Gilberto Zaborowsky
Luisa Mell, Enzo e Gilberto Zaborowsky (Reprodução/Instagram)

Luisa estava, a propósito, de férias na Bahia quando foi avisada da tragédia em Brumadinho, que contabiliza 210 mortos e 96 desaparecidos até o momento. Reuniu uma equipe de resgate para tirar animais que estavam presos à lama. Uma reportagem tinha dado conta que eles estavam sendo “eutanasiados”. “É um jeito bonito de não falar que eles estavam sendo exterminados. Como se pode avaliar a necessidade de sacrifício do alto de um helicóptero? Eu desci, coloquei meus pés ali, não era tão difícil”, sobe a voz, indignada. Conseguiu salvar um boi, à custa de muita briga com a Vale, que não queria permitir a entrada da sua equipe, acusando-a de se aproveitar da tragédia para aparecer.

Essa narrativa é, aliás, uma marca dos resgates da ONG que leva o nome da ativista: no primeiro momento, não são levados a sério por terem um rosto famoso à frente; em seguida, são acusados de se aproveitarem das situações para chamar atenção, mas, no fim, são bem-sucedidos. Só ano passado, a organização encaminhou cerca de 800 animais para adoção, salvou uma ursa idosa com um avião da FAB e resgatou uma centena de buldogues mantidos em condições insalubres em uma clínica clandestina. “Mas faço inimigos todos os dias. A Band me chamou para um programa e me demitiu antes de ele começar. Tenho certeza de que é pela pressão de agentes do agronegócio”, dispara. Na época, a Band declarou que o projeto não andou por não ter conseguido viabilidade comercial.

“Como a um cachorro”

O boi salvo da lama ficou em Brumadinho. “Estou tentando comprá-lo, mas o proprietário não quer vender. Não consigo entender o que ele vai fazer com a carne de um animal intoxicado pelos rejeitos”, revolta-se. Seu desejo é trazer o bovino para viver com os mais de 400 gatos e cachorros de que cuida em sua ONG, um bem-equipado complexo veterinário na cidade de Ribeirão Pires, na Grande São Paulo. “Vou cuidar dele como a um cachorro”, provoca.

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Boi é resgatado de lama após tragédia em Brumadinho (MG)
Boi é resgatado de lama após tragédia em Brumadinho (MG) (Wilton Junior/Estadão Conteúdo)

Até encontrar o que chama de sua missão, Luisa cursou Direito, atuou como atriz, repórter e apresentadora. Achou que a televisão seria um bom um caminho quando o astrólogo Oscar Quiroga vaticinou que teria sucesso encontrando seus pares. “Hoje a fama é para mim só um meio de viabilizar a ONG e ajudar os que querem proteger os animais”, diz ela, que mantém o local e financia os resgates com quatro sócios, a um gasto médio de 350.000 reais por mês provenientes de doações e de seu próprio bolso – de suas economias, diz. “Mas chegar aqui foi um processo de transformação. Eu fui uma pessoal fútil, egoísta e superficial. Se sou hoje uma mulher consciente, que tenta todo dia tornar o mundo melhor, devo muito disso aos animais que passaram pela minha vida e quero encurtar esse caminho para o Enzo.”

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O Instituto

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Números

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O resgate dos 1.707

O maior número de cachorros salvos de maus tratos em um resgate no Brasil começou como muitos outros da história do Instituto Luisa Mell: um telefonema da polícia, a partir de denúncia da vizinhança desconfiada pelo cheiro ou latidos. Nesse caso, ocorrido em fevereiro, foram moradores da redondeza do canil Céu Azul, em Piedade, São Paulo, de onde a força policial precisaria retirar 1.707 animais, amontoados sobre urina e fezes, alguns cegos e quase todos doentes. Uma nota fiscal emitida pela Petz, encontrada no local, revelou a rede de pet shops como um dos muitos clientes do negócio, levando a empresa a encerrar, dias depois, a venda de filhotes de raça, uma de suas maiores fontes de receita. Na entrevista a seguir, a ativista fala sobre a operação de salvamento, que até o início de março tinha consumido 1 milhão de reais dos recursos da ONG que mantém em São Paulo, e a campanha difamatória e as ameaças de morte que se seguiram, obrigando-a a se mudar temporariamente para um endereço desconhecido até da própria família.

Após o resgate, circularam áudios no WhatsApp acusando seu instituto de vender os animais resgatados, de só salvar cães de raça e abandonar os animais idosos. O que você tem a dizer sobre isso? São acusações ridículas e sem base alguma. Sem dúvida foram os criadores que inventaram essa palhaçada. Peguei os 1.707 cachorros que estavam lá. Todos. Mantenho abrigo separado para cães deficientes, velhos – que aliás é, praticamente, um asilo. É pública minha defesa da doação em vez da venda de cães. Eles estão desesperados porque estamos atrapalhando os negócios deles.

Você contou que foi a polícia que descobriu o abrigo ilegal de cães e pediu ajuda à ONG. Isso aconteceu outras vezes? Sim, acontece bastante. Já saí correndo de consultório médico, da aula de ginástica, temos de ser rápidos. Dessa vez foi no meio da festa de aniversário de 4 anos do meu filho. Eles avisam na hora que vão realizar o flagrante e nos chamam porque não existe a estrutura de resgate (transporte e abrigo) como a nossa nas instituições públicas.

Você já tinha recebido ameaças por agir contra comercialização de animais? Muitas vezes, mas essa foi mais grave. Tive de ir para um endereço longe da minha família, pedir proteção policial, me esconder. É sempre o meu rosto e meu nome que aparecem, mas tenho uma equipe, engajada e dedicada. Não me preocupo por mim. Sei que é o preço de mudar essa vista grossa sobre a crueldade contra os animais que persiste na nossa sociedade. E tenho certeza que vamos conseguir.

A carreira de apresentadora foi um passo para a vida de ativista? O que mais te angustia nessa mudança de rumo profissional? Sim, a televisão e todos os deslumbres em torno foram apenas uma preparação para o que eu faço hoje. Não trocaria o trabalho na ONG por nenhum trabalho de mídia – a não ser que ajudasse a salvar mais animais, conscientizar mais pessoas sobre a nossa obrigação com o bem-estar de tudo que vive. O que me angustia é ser humana e limitada e incapaz de salvar todas essas criaturas que sujeitamos ao sofrimento todos os dias.

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