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Cultura

Lei Rouanet: para além dos memes

Criada há cerca de trinta anos, ela se transformou em alvo de piadas e fake news na internet. Mas como funciona esse mecanismo de apoio à cultura?

por Ana Paula Sousa Atualizado em 8 fev 2019, 15h05 - Publicado em
8 fev 2019
07h00

Uma lei do barulho

Ainda durante a campanha eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro afirmou: “Ninguém é contra a cultura, mas a Lei Rouanet tem que ser revista”. A lei, de acordo com ele, deve ser usada pelo “tocador de viola” e pelo “jovem que está começando”. “Não é dar 10 milhões de reais para cantora famosa (…) Essa mamata tem que acabar.” A fala de Bolsonaro ecoa um discurso que se tornou corrente na sociedade: aquele que atrela a Lei Rouanet à ideia de “boquinha”, de “cooptação” e de mau uso do dinheiro público. Na internet, o mecanismo se tornou um dos alvos preferidos de memes e notícias falsas. Algumas críticas são válidas e devem ser feitas. Outras, porém, levam o público à desinformação e ao julgamento equivocado de um mecanismo de incentivo que, em quase 30 anos de existência, contribuiu com mais de 50.000 projetos culturais no país, produzindo um impacto econômico de 49,7 bilhões de reais.

A Lei nº 8.313, criada pelo diplomata e intelectual Sérgio Paulo Rouanet em 1991, não é exatamente o que hoje se chama de Lei Rouanet. A lei promulgada pelo ex-presidente Fernando Collor instituiu, na verdade, o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que se baseava num tripé: o Fundo Nacional da Cultura (FNC), os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) e, por fim, os incentivos fiscais, que, com o tempo, se tornaram sinônimo de Lei Rouanet.

O FNC deveria, entre outras coisas, estimular projetos de fora do eixo Rio-São Paulo e contribuir para a preservação do patrimônio cultural e histórico; já os Ficart foram idealizados para projetos com capacidade de dar retorno comercial aos investidores; o mecanismo de dedução fiscal, por sua vez, tinha o objetivo de aguçar no empresariado o gosto pelo mecenato, prática cujo nome deriva dos mecenas, homens ricos que, na Renascença, apoiavam as artes. Mas o FNC tem os cofres praticamente vazios, os Ficart nunca saíram do papel e tudo, na cultura, passou a depender do incentivo fiscal.


O que é a lei, afinal?

A lei permite, trocando em miúdos, que empresas e pessoas físicas invistam parte do imposto de renda devido em projetos culturais. As empresas podem aplicar até 4% do IR a pagar na cultura; as pessoas físicas, até 6%. O governo abre mão desses recursos para que eles sejam aplicados numa área considerada essencial para o desenvolvimento do país.

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O investimento pode se dar de duas formas. Na mais usual delas (artigo 18), o apoiador abate 100% do valor investido em projetos de artes cênicas, música erudita e instrumental, exposições de artes e livros. Na outra (artigo 26), ele deduz apenas 30% do valor investido, ou seja, a empresa, obrigatoriamente, coloca recursos próprios no projeto. Os apoios a jogos eletrônicos, música popular, fotografia, design e moda estão enquadrados nesse artigo.

Um detalhe importante é que só empresas tributadas com base no lucro real podem usar a lei. Essa regra faz com que sejam excluídos da possibilidade de patrocínio com incentivo fiscal todos os pequenos e muitos dos médios empresários que faturam até 78 milhões de reais por ano e que, salvo exceções, podem aderir ao regime tributário do lucro presumido. Um exemplo de empresa que é invariavelmente tributada pelo lucro real são os bancos.


A escolha dos projetos que receberão recursos

Apesar de ter ganhado fama de ser usada para a cooptação de artistas, a Lei Rouanet foi criada a partir de um princípio liberal. A decisão sobre onde alocar os recursos não está nas mãos do Estado, mas sim nas mãos das empresas patrocinadoras. Ao governo cabe apenas fazer uma avaliação técnica do projeto (documentação, orçamento e objetivos) e encaminhá-lo para a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic), formada por 21 membros indicados por entidades do setor. Após a aprovação pela Cnic, a autorização para captação é homologada pelo ministro ou secretário competente. Nos últimos dez anos, entre 2009 e 2018, dos 60.699 projetos aprovados, pouco mais do que a metade, 32.705, conseguiram captar recursos.

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Em nenhuma dessas etapas existe análise de mérito. Um projeto pode ser rejeitado por falta de clareza, por não cumprir as normas legais ou por não estar adequado aos objetivos propostos. Mas não porque quem o propôs é famoso ou porque se trata, supostamente, de algo “comercial”. “A Lei Rouanet é um instrumento liberal de gestão cultural. Ela dá autonomia aos agentes de mercado para a destinação de recursos, com mínima interferência do Estado”, resume Carlos Cavalcanti, CEO do Atelier de Cultura, responsável pelos musicais O Homem de La Mancha e Annie, dirigidos por Miguel Falabella.

Cavalcanti enfatiza que a lei não só é transparente – hoje, os dados de captação estão acessíveis a qualquer pessoa, via internet – como impõe uma série de regras. “A Lei estabelece obrigações extremamente rigorosas para o produtor cultural; a utilização dos recursos exige um sério padrão de gestão contábil e financeira”, afirma.


As críticas

Casos famosos, como o do espetáculo do Cirque du Soleil, o livro sobre a cantora Claudia Leitte e o Rock in Rio se tornaram exemplos de desvirtuamento da lei. Em 2006, a companhia circense, apesar de ter captado 9,4 milhões de reais em recursos públicos, cobrou até 370 reais pelos ingressos. Em 2016, a produtora que tem Claudia como sócia foi autorizada a captar 356.000 reais para o lançamento de sua biografia – a aprovação pegou tão mal que a cantora desistiu do projeto. Já a edição de 2011 do Rock in Rio, que obteve autorização para captar 12,3 milhões de reais – tendo obtido 6,7 milhões de reais extras em patrocínio – levou o Tribunal de Contas da União (TCU) a escrever, num parecer, que projetos com alto potencial lucrativo não deveriam receber incentivos fiscais.

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O auge dos escândalos se deu, porém, em 2016, quando a Polícia Federal tornou pública a investigação que apurou desvios de recursos da ordem 180 milhões de reais e que tinha como alvo o grupo dirigido por Antonio Carlos Bellini Amorim, que era totalmente desconhecido no meio cultural e que usou a lei até para pagar o casamento do filho. Bellini chegou a ser preso na investigação apelidada de Operação Boca Livre. No fim do ano passado, o Ministério Público Federal (MPF) ofereceu, à 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, 27 denúncias contra a empresa do acusado.

Felipe Vaz Amorim: casamento pago com dinheiro captado via Lei Rouanet
Felipe Vaz Amorim: casamento pago com dinheiro captado via Lei Rouanet (Divulgação/VEJA)

O trabalho da PF motivou a Câmara dos Deputados a instaurar, ainda em 2016, uma CPI destinada a investigar a Lei Rouanet. À parte o caso de Bellini, os deputados não descobriram outras falcatruas. Diagnosticaram, porém, várias falhas na lei. O relatório final da CPI recomendou que se criem melhores mecanismos de controle, que a lei seja mais transparente e que se busque uma distribuição menos centralizada de recursos; o relatório registra, no entanto, o consenso em torno de sua preservação. Na esteira da CPI e dos questionamentos públicos, uma Instrução Normativa (IN) de 2017 estabeleceu, por exemplo, a exigência de que 30% dos ingressos de produções viabilizadas com a lei sejam gratuitos e que 20% tenham um valor médio de até 75 reais.

“Eu credito muito do ambiente refratário à lei ao enorme passivo de projetos à espera da análise no Ministério”, diz Sérgio Sá Leitão, ex-Ministro da Cultura, referindo-se ao acúmulo de projetos à espera de análise de prestação de contas ao longo dos anos e ao próprio excesso de trabalho dos pareceristas. “Se a prestação de contas fosse avaliada, um escândalo como esse do Bellini não teria acontecido. Ainda temos um passivo de 15.000 projetos para serem analisados, mas há dois anos não geramos mais passivo, ou seja, todos os novos projetos são analisados.” A fragilidade dos mecanismos de controle na prestação de contas se deve não só à falta de pessoal, mas também às próprias minúcias do processo, que implica, entre outras coisas, em fornecimento de notas fiscais para cada centavo gasto. Desde o ano passado, vem sendo implantado um sistema de controle digital, que deve tornar mais eficaz o trâmite.

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Outros problemas são a concentração em projetos das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro – em especial, em uns poucos bairros dessas duas cidades – e a concentração em grandes proponentes: apenas 3% de todos os proponentes ficam com metade dos recursos captados e 80% do dinheiro da lei fica no Sudeste. Em 2018, por exemplo, dos 3.220 projetos que captaram recursos, 1.801 eram dessa região – já no Norte, apenas 37 conseguiram captar.

Além disso, é tênue a linha que separa os objetivos de marketing das empresas dos objetivos culturais – apesar de o artigo 26 prever a contrapartida de dinheiro do próprio patrocinador, até 2015, de cada 10 reais investidos, 9,50 reais tinham origem pública. Ou seja, o propósito inicial da lei, que era contribuir para a criação do hábito do mecenato, passou longe de ser cumprido.

Apesar de terem sido “renovadas” no último ano, especialmente durante as eleições, e até por parte de políticos que hoje integram o governo de Jair Bolsonaro, as críticas à Lei Rouanet remontam ao início do governo Lula. A concentração regional e a maior facilidade de captação entre artistas “consagrados” eram alguns dos defeitos apontados pelo então secretário-executivo do MinC, Juca Ferreira, já em 2003. Em 2005, o MinC trouxe a público as primeiras propostas de mudança no mecanismo e, desde 2010, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que substitui a Lei Rouanet pelo Procultura, que limita os 100% de isenção e direciona parte dos recursos do mecenato para o FNC. Esse projeto, que sempre enfrentou oposição, foi desconsiderado pelo governo Michel Temer e é, na prática, impossível que seja retomado pelo novo governo. O mais provável, pelo que se apurou até agora, é que o governo Bolsonaro acabe por fazer apenas ajustes na lei.

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“É correto afirmar que a lei deve ser aprimorada e atualizada, mas a sua extinção seria dramática, levando o mundo da cultura a uma grande crise”, pondera Eduardo Saron, diretor do Instituto Itaú Cultural. Hoje, o Instituto é mantido com recursos próprios e o banco usa a lei para apoiar projetos de terceiros. “Grandes museus e eventos culturais relevantes, na sua maioria com bilheteria gratuita ou a preços populares, só são possíveis graças aos recursos que a lei injeta no sistema cultural brasileiro.”

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Fim da lei?

Nas duas reuniões que teve com a equipe de transição do governo Bolsonaro, no fim do ano passado, o ex-ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, teve de falar bastante sobre a Lei Rouanet. Mas em nenhum momento, assegura, houve menção à extinção do mecanismo “O ministro (da Cidadania) Osmar Terra buscou apenas entender o que pode ser aperfeiçoado e melhorado”, assegura.

A despeito dos memes que atrelam a lei a Claudia Leitte, Pablo Vittar, Luan Santana ou Fábio Porchat, quem sofreria o maior abalo com seu fim seriam instituições como o Museu do Amanhã e a Orquestra Sinfônica Brasileira, no Rio de Janeiro, o Instituto Inhotim, em Minas Gerais, e o Masp e a Osesp, em São Paulo – que são, ao lado das grandes produtoras de musicais, os maiores captadores.

Em 2018, por exemplo, dos 1,3 bilhão de reais captados Brasil afora, 482,3 milhões de reais foram para projetos de artes cênicas e 187,9 milhões de reais para projetos de artes visuais. O proponente que mais captou recursos no ano passado – 21,5 milhões de reais – foi o Masp. Em seguida, aparece o Atelier de Cultura, que captou 16,5 milhões de reais para a realização de musicais como A Escola do Rock e Annie. Em terceiro lugar está a Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira, com captação de 14,8 milhões de reais.

Na Fundação Bienal de São Paulo, 49% dos recursos vêm das leis de incentivo – da Rouanet e de suas similares estaduais e municipais. O resto é integralizado com o apoio de consulados e embaixadas, doações e parcerias com eventos feitos no Pavilhão. Ainda assim, segundo Luciana Guimarães, superintendente da Fundação, a Rouanet é imprescindível para a continuidade de projetos que são, em suas palavras, “potentes e impactantes”. Via lei de incentivo federal, no ano passado, a fundação foi o décimo proponente que mais captou recursos – 11,1 milhões de reais.

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“Em 2018, 700.000 pessoas visitaram a exposição. Em três meses, geramos 1.600 postos de trabalho, tivemos repercussão na imprensa nacional e internacional e, além disso, representamos o Brasil na Bienal de Veneza”, afirma Luciana. “Tudo isso ajuda a promover a arte brasileira e a autoestima do Brasil.” Todas as grandes instituições que usam a lei oferecem, como contrapartida, programas educativos e de democratização de acesso. Ao menos 10% das entradas devem ser distribuídos gratuitamente para projetos sociais, educativos ou de formação artística, por exemplo.

Com o título ‘Afinidades afetivas’, a 33ª Bienal de São Paulo ocorreu até o dia 9 de dezembro de 2018 no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, localizado no parque do Ibirapuera
Com o título ‘Afinidades afetivas’, a 33ª Bienal de São Paulo ocorreu até o dia 9 de dezembro de 2018 no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, localizado no parque do Ibirapuera (Daniel Lins /Fotoarena/Folhapress)

Na outra ponta do sistema, seriam atingidos também os milhares de pequenos proponentes que captam menos de 100.000 reais. Os menos atingidos, na prática, seriam os cantores conhecidos e os grandes festivais de música. “Não vale a pena, para eventos de temporadas curtíssimas, como shows, assumir todas as contrapartidas de ingressos gratuitos ou a preços reduzidos, até porque é quase certa a venda de ingressos’, explica Carlos Cavalcanti, do Atelier de Cultura.

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Cavalcanti observa que, sem a lei, acabaria também toda a política de contrapartidas sociais dos projetos culturais. “Isso faria com que espetáculos teatrais, exposições, shows, livros não comerciais e projetos de formação cultural fossem destinados exclusivamente àqueles que têm renda para pagar o ingresso.”

A última perda, por fim, seria de ordem econômica. Apesar de a Lei Rouanet responder por apenas 0,64% de todo o incentivo federal – que contempla desde a indústria automotiva até o esporte e a educação -, um estudo divulgado no fim de 2018 pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) demonstrou que cada real captado via Lei Rouanet gerou 1,59 real na economia. Além disso, as indústrias criativas, nas quais a cultura se insere, respondem hoje, de acordo com o extinto Ministério da Cultura, por 2,64% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.

Apesar de as ameaças de extinção da lei ainda pairarem no ar, ninguém, no setor cultural, trabalha concretamente com essa possibilidade. “Acho que o governo não vai ser louco a ponto de acabar com a Lei Rouanet”, aposta Ricardo Ohtake, diretor do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Na opinião de Ohtake, o fim da lei atingiria, antes de mais nada, a população. “A extinção de determinados projetos afetaria de forma direta a construção e a manutenção de símbolos que foram erguidos pela inteligência e pela criatividade nacionais e que funcionam como alicerce para todas as sociedades desenvolvidas”, acrescenta.

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Seguindo a mesma toada, o ator Murilo Benício provoca: “Se não gostam da Lei Rouanet, que inventem outra. A gente não pode é ter uma falta de cultura. Vai viver de quê? Da cultura do outro? A gente tem que construir e celebrar nossa cultura, para que possamos ter nossa identidade. Um país sem identidade é oco”.

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Alternativas

O Tribunal de Contas da União (TCU) se pronunciou, em 2016, a favor da restrição do uso de recursos da Lei Rouanet por projetos com potencial lucrativo e autossustentável. O Tribunal não avançou, porém, na definição dos parâmetros para se determinar o que é um projeto comercial, capaz de se pagar sem a necessidade do uso da renúncia fiscal. Quais seriam, então, as possibilidades de remuneração de um projeto cultural fora do universo do apoio direto do Estado e dos incentivos?

Bilheteria

Antonio Fagundes tem feito questão de dizer que coloca suas peças em cartaz sem a Lei Rouanet. O ator excursiona pelo país, é produtor do próprio espetáculo e tem um público cativo. A maioria dos atores e produtores insiste, porém, que a bilheteria não é suficiente para pagar uma produção no Brasil.

Bianca De Fellipes, produtora de um sucesso do cinema brasileiro, Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (1995) e de Renato Russo – O Musical, há 12 anos em cartaz, esmiúça a contabilidade da apresentação feita em dezembro de 2018 no Teatro Riachuelo, em Natal, sem lei, para explicar porque é tão difícil a conta fechar.

“Colocamos 1.098 pessoas no teatro. Tirando o percentual gratuito de ingressos, a bilheteria rendeu R$ 50 mil. Desse total, ficamos com 5.000 reais. E os custos são muitos: aluguel do teatro é 20.000 reais, temos os direitos autorais, o Ecad, o transporte da equipe, os cachês… Nesse caso, paguei as contas. Mas se tivesse chovido, por exemplo, teria terminado no vermelho”, afirma. “Comecei a descarregar o caminhão da produção às 7h30 e fechamos o teatro às 23h30.”

‘Renato Russo, O Musical’
‘Renato Russo, O Musical’ (Facebook/Reprodução)

Financiamento coletivo

O financiamento coletivo, bastante utilizado nos segmentos de música, livros e no universo geek, não serviria para manter o Masp ou para colocar de pé um musical com dezenas de artistas no palco – para se ter uma ideia, em 2018, o Masp captou cerca de 21 milhões de reais e a Atelier, que faz os musicais de Miguel Falabella, 16 milhões de reais, valores inalcançáveis numa vaquinha digital. Trata-se, porém, de uma alternativa eficaz para produtos culturais de outro feitio e tamanho.

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O Teatro Mágico, por exemplo, pediu 100.000 reais na plataforma Catarse e arrecadou 391.000 reais; o apoio mais caro, de 350 reais, dava direito a um ingresso para um show exclusivo, a uma viagem com a trupe no mesmo ônibus, camiseta, CD, pôster, caneca etc. A dupla Anavitória também conseguiu, em 2016, arrecadar 61.000 reais para produzir seu primeiro álbum. De toda forma, os 20 milhões de reais arrecadados pela plataforma Catarse em 2018 são ínfimos ante os 1,3 bilhão de reais mobilizados pela Lei Rouanet.


Endowments

No dia 4 janeiro, foi sancionada a Lei nº 13.800, que regulariza os endowments no Brasil. O endowment é um fundo patrimonial formado a partir de uma doação de uma empresa ou de uma pessoa. Nos Estados Unidos, fundações como Rockefeller e Carnegie e instituições como o Metropolitan Museum of Art de Nova York são exemplos do modelo. Na França, os endowments foram regulamentados em 2008 e, em um ano, 230 fundos foram criados – dentre os quais, o do Louvre.

No Brasil, esse tipo de fundo vinha sendo utilizado, até aqui, sobretudo por instituições ligadas ao setor financeiro, como a Fundação Bradesco, ou famílias da área financeira, como o Instituto Moreira Salles. Com a nova lei, a expectativa é que o modelo avance na cultura. “Na área da cultura, um dos primeiros endowments a surgir é o Masp, que está em processo de captação; a Osesp também tem trabalhado nisso; e a primeira instituição cultural que será inaugurada já com endowment é o Museu Judaico de São Paulo”, diz Ricardo Levisky, principal defensor do modelo no Brasil.

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Gerido e administrado como qualquer fundo de investimento, o endowment tem duas características importantes: a manutenção da instituição beneficiada deve ser feita, basicamente, com os rendimentos financeiros do fundo; e ele possui uma blindagem jurídica que impede que futuros herdeiros tentem reaver o dinheiro ali colocado, o que garante a perenidade da instituição beneficiada.

“O principal aspecto positivo da lei é que ela, ao blindar os fundos patrimoniais, trouxe para o doador uma segurança jurídica, garantindo que os recursos doados não estejam atrelados a questões personalistas”, diz Levisky. “A cultura foi especialmente beneficiada porque ela passa a poder utilizar a Lei Rouanet como incentivo para os endowments. É o único incentivo que está previsto na lei, possibilitando a museus, orquestras e outras instituições perenes da área cultural que usem a Rouanet tanto para realizar projetos quanto para a sua sustentabilidade de longo prazo.”

Museu Metropolitano de Arte em Nova York
Museu Metropolitano de Arte em Nova York (Felix Hörhager/picture alliance/Getty Images)


Marketing das marcas

No século XXI, a comunicação das marcas se sofisticou e, mundialmente, a cultura é vista como uma ferramenta importante de comunicação. Shows, prêmios literários ou mesmo filmes com uma causa podem contribuir para aquilo que no marketing se chama “atitude de marca”. A ideia, nesse caso, é que a marca engaje os consumidores a partir de causas sociais ou culturais; mais do que simplesmente exposta, a marca deve ser qualificada. No Brasil, como as empresas podem atrelar o nome à cultura com 100% de isenção fiscal, esse modelo, simplesmente, ainda não vingou. Afinal de contas, por que usar a verba do departamento de marketing se é possível usar parte dos recursos do imposto a pagar?

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Internacionalmente, no entanto, o marketing cultural tem muita relevância. No setor de museus do Reino Unido, por exemplo, a British Petroleum atrela seu nome à Tate Britain, a Toshiba ao museu Victoria & Albert e a Bloomberg, em busca da consolidação de uma imagem ligada à inovação, apoia a Serpentine Gallery, a Whitechapel Gallery e a Tate Modern.

Na França, ainda na década de 1990, ao descobrir que as mulheres não compravam seus produtos e serviços de telefonia, a Orange criou o Orange Prize, destinado a premiar escritoras de ficção. Resolvido o descompasso de gênero entre seus consumidores, a empresa passou o prêmio adiante e, em 2014, o Orange Prize virou Bailey’s Women’s Prize for Fiction.

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E o cinema?

Dentre as várias imprecisões que marcam as falas sobre o incentivo à cultura no Brasil está aquela que atribuiu à Lei Rouanet a manutenção do cinema brasileiro. A relação entre os longas-metragens nacionais e a Lei Rouanet é absolutamente remota.

O que a Lei Rouanet ajuda a manter, no setor audiovisual são, basicamente, os festivais de cinema. Os filmes, em sua grande maioria, são feitos com o auxílio de uma lei específica, a Lei do Audiovisual, e, sobretudo, com os recursos advindos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Criado em 2006 e turbinado a partir de 2011, o FSA é hoje a principal fonte de financiamento de séries e filmes.

No entanto, como foram os incentivos fiscais que tiraram o cinema brasileiro do coma na década de 1990 e o mantiveram vivo nos anos seguintes, ainda é comum que se diga que são eles o esteio da produção. Não são. Em 2017, enquanto o fomento indireto – via renúncia fiscal – mobilizou 386 milhões de reais, o FSA injetou 606 milhões de reais no setor.

Mas de onde vem esse dinheiro, afinal de contas? A Lei 12.485, de 2011, que regulamentou a entrada das empresas de telecomunicações na TV por assinatura e instituiu cotas de conteúdo nacional, criou também a Condecine Teles, taxa cobrada por celular ativo. Até 2015, era uma taxa de 3,22 reais por celular, além de uma taxa anual relativa a cada estação de rádio base de banda larga fixa. Essa taxa incorporou empresas como Claro e Vivo ao sistema de financiamento e responde, atualmente, por mais de 75% dos recursos que abastecem o FSA.

Ao contrário do que acontece com a Lei do Audiovisual – e com a própria Lei Rouanet -, que entrega o poder decisório para a empresa patrocinadora, no caso do FSA a ação estatal é direta. Parte do dinheiro é repassado de forma automática aos players que apresentam determinados resultados de bilheteria e parte é distribuído por meio de processos seletivos coordenados pela Agência Nacional de Cinema e pelo Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul.

Outro aspecto fundamental do FSA é que há duas modalidades de apoio: reembolsáveis e não reembolsáveis. No caso dos investimentos reembolsáveis, o fundo tem participação nos resultados comerciais dos filmes, ou seja, parte do valor investido pode retornar ao Estado. O FSA prevê ainda operações de empréstimo aos produtores.

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