Definir Ingmar Bergman é uma ingrata tarefa que críticos e seguidores insistem em empreender, sem sair da superfície. Um dos mestres do cinema moderno, o diretor sueco experimentou de tudo um pouco na estética de suas obras, enquanto descamou os dissabores e paixões de seu entendimento da humanidade, fé, amor e existencialismo. Como resultado, foi aclamado por festivais como os de Berlim, Veneza e Cannes e pela Academia de Hollywood. Ecoou em relevantes movimentos, como a Nouvelle Vague francesa e o Cinema Novo brasileiro nas décadas de 1960, até o nórdico Dogma 95, nos anos 1990. Sua ampla obra sobreviveu ao teste do tempo e agora, 100 anos após seu nascimento, um belo documentário e cerca de 140 eventos ao redor do mundo — entre eles uma mostra no Brasil — exploram os detalhes de seus filmes, os bastidores, e o homem por trás do artista. E o homem era tão intrigante quanto a obra.
“Bergman foi o grande cineasta dos temas humanos, do sofrimento, da dor da existência, da impossibilidade do cotidiano. Mas também do amor, da precariedade do afeto, da quase intransponível incomunicabilidade do ser humano nas coisas mais banais”, diz Giscard Luccas, curador e distribuidor da mostra Centenário Ingmar Bergman. “Seus filmes tratam dos temas mais urgentes e atemporais do ser humano. As tragédias que todos vivemos no dia-a-dia. Ver um filme dele hoje tem o mesmo sentido ou até mais do que na época.”
Prolífico e inquieto, Bergman assinou mais de 70 filmes e séries, entre roteiro e direção para TV e cinema, fora sua ampla produção para o teatro e rádio. Um período que exemplifica bem tamanha capacidade produtiva é 1957, detalhado por Jane Magnusson no documentário Bergman – 100 Anos. Nos primeiros minutos do filme, Jane apresenta como será aquele ano na vida do cineasta. Sofrendo de uma úlcera aguda, Bergman lança, em fevereiro, uma de suas obras-primas, o longa O Sétimo Selo. Naquele momento, o sueco nem tinha pensado no roteiro de Morangos Silvestres, sua próxima obra-prima — o filme chegaria aos cinemas em dezembro daquele mesmo ano.
“É difícil explicar como ele produziu tanto”, diz Jane Magnusson em entrevista a VEJA. “Uma coisa é clara: ele não tinha muita vida social ou familiar. Sacrifícios feitos pela carreira. No começo de 1957, ele ainda não era o icônico Ingmar Bergman. Mas ele queria ser. E estava disposto a trabalhar por isso, apesar da ansiedade corroê-lo por dentro.”
A dor no estômago — que o corroía — era tão forte que Bergman foi internado em maio daquele ano. É neste período de folga forçada que ele escreve o roteiro de Morangos Silvestres — e começa a filmá-lo no mês seguinte. “Acredito que essa intensidade de produção cinematográfica ainda seja inédita no mundo. Não conheço outra pessoa, outro diretor que já tenha feito tanto em tão pouco tempo”, diz Jane.
Se a vida social era sacrificada em prol do trabalho, Bergman encontrava suas amantes e esposas (todas no plural) no meio artístico. Entre elas, suas principais musas nas telas, caso de Harriet Andersson, Bibi Andersson e Liv Ullmann. “A pesquisa para o documentário já estava absurda quando somei todos os trabalhos que ele lançaria aquele ano. Mas quando olhei a vida pessoal ficou ainda mais agitado”, conta Jane. “Em 57, ele estava casado com Gun Grut, mas mantinha um caso com a atriz Bibi Andersson, e no mesmo ano ele conheceria sua quarta mulher, Kabi Laretei. Então, percebi que suas relações amorosas eram condizentes com a vida intensa que ele levou.”
“Minha vida pessoal é uma tragédia. Meus fracassos pessoais são notórios. Sou péssimo pai, mal vejo meus filhos. Por isso tento ser um artista excepcional, que entretém.” (Ingmar Bergman)
No total, o cineasta se casaria cinco vezes e teria nove filhos — reconhecidos por ele. Disse diversas vezes que era um pai relapso, que mal via os herdeiros. Traiu as quatro primeiras esposas e manteve casos notórios com atrizes nos bastidores. “Em determinado ponto, entendi que eu não tenho talento para o casamento, mas acredito nele”, chegou a dizer o cineasta.
“Se Bergman estivesse trabalhando hoje e não nos anos 1950, provavelmente ele agiria de modo diferente com as mulheres ao redor. E teria uma resposta diferente delas”, diz Jane. “Ele não foi um misógino, mas se envolveu com várias das atrizes com quem trabalhou, traiu esposas, teve casos nos sets. Acredito que tudo está ligado ao clima e cultura da época, atitudes que hoje poderiam fazer com que ele fosse julgado nas redes sociais, por exemplo.”
Se caísse no atual tribunal da internet, Bergman poderia, contudo, ser absolvido pelo seu pioneirismo ao deixar a mulher em destaque nos filmes e também nos bastidores.
“Seu universo é claramente o feminino. E com suas atrizes conseguiu um grau de fidelidade e de comunhão artística nunca visto”, lembra Giscard. “A produtora Katinka Farigó, que trabalhou com Bergman por mais de 30 anos, diz em entrevistas que ele prestigiava muito as mulheres. Na equipe de seus filmes, muitas vezes havia mais mulheres que homens na produção”, conta sobre o feito que Hollywood, até hoje, pena em alcançar. “Dirigir é mais divertido com mulheres. Tudo é mais divertido com mulheres”, dizia o cineasta.
Os investigadores digitais do nosso século, porém, não perdoariam um capítulo manchado da história do cineasta. Aos 18 anos, assim como boa parte dos jovens europeus, Bergman foi à Alemanha para estudar e aprender a língua alemã. Na época, o nazismo estava em ascensão, e ele se tornou um adepto da filosofia de Hitler. Mais tarde, explicou os motivos e disse que não acreditava, até então, que os campos de concentração fossem reais.
“O nazismo é um assunto delicado na Europa, pois muitas pessoas tiveram contato com a ideologia no começo, sem saber exatamente no que aquilo culminaria”, conta Jane. “Bergman foi o primeiro grande artista e um dos poucos a ser honesto sobre isso. Ele conta em suas autobiografias que chegou a apoiar Hitler, que admirava a paixão e a força dos seus seguidores. Mas ele não se orgulha daquela época.” A cineasta relembra que os suecos e outros países europeus sofriam de um grande medo da Rússia e dos países asiáticos. E Hitler surgiu como o personagem que os protegeria de ameaças externas. “Muitos acreditavam que o nazismo seria uma alternativa. Bergman não foi o único a pensar isso, mas foi um dos poucos que assumiu o erro. Isso não o inocenta, porém é importante que alguém olhe para o que fez de errado, analise aquilo, e se arrependa.”
A diretora conta que foi criticada por ter adicionado em seu documentário esse trecho do passado do cineasta. Mas ela não poupa Bergman. Suas muitas qualidades andam lado a lado com uma lista infinda de defeitos. “Ele não foi perfeito. Ninguém é”, ressalta Jane, que mostra no filme o problema do cineasta com a verdade: ele mentia para si mesmo e escreveu diferentes autobiografias, que diferem entre si. Era ciumento e chegou a demonstrar comportamentos agressivos, reflexo de um lar conduzido por um pai violento. Também era extremamente sensível com críticas e opiniões contrárias às suas. “Ele surtou quando Barbra Streisand fez observações no roteiro de The Merry Widow”, conta Jane sobre a opereta teatral em que ambos trabalhariam juntos para o cinema. Como resultado, o filme nunca saiu do papel.
O documentário mostra, aliás, um trecho da entrevista de Bergman ao apresentador Dick Cavett. Ao ser questionado sobre o alto teor psicológico de sua obra, o cineasta trata com certo desdém o campo de estudo da mente e conta que até se consultou com um psiquiatra, pois sofria de pernas inquietas. O diagnóstico, diz, é que estava tudo bem com ele. Em seguida, entra em cena Bibi Andersson que reconta a história de um modo bem diferente. “Eu estava lá e sei que o psiquiatra não disse que ele era saudável”, diz Bibi ao lado de um Bergman que ri de nervoso. “Que ele era tão cheio de neuroses que, se as fizesse sumir, provavelmente ele pararia de fazer filmes.”
“Se você fez um filme e alguns milhões de pessoas viram, e se uma ou duas se sentiram melhor, ou ganharam uma nova visão sobre sua almas, então o filme não foi inútil.” (Ingmar Bergman)
O cinema agradece que o tratamento não tenha ido adiante. Bergman, nem tanto. O cineasta sofreria um colapso nervoso no fim dos anos 1970 e teria que conviver com seus demônios e escolhas pessoais até o fim da vida, em 2007, isolado em sua querida ilha Fårö. Três anos antes, ele concedeu uma longa entrevista ao canal sueco SVT, na qual contou que criou uma rotina de caminhada, alimentação saudável e um limite de três horas de escrita por dia. Hábitos que o ajudaram a chegar aos 89 anos. “Para uma pessoa caótica como eu, que luta para estar sempre no controle, é necessário seguir regras”, disse na ocasião, lembrando que também enfrentava uma luta diária para sair da cama. “Demônios não gostam de ar fresco, eles preferem que você fique na cama apreensivo.”