Nova tradução de ‘Rei Lear’ ilumina obra-prima monumental de Shakespeare
Título expõe as tormentas do poder e da natureza humana como nenhuma outra obra literária jamais foi capaz de fazer
No terceiro ato de Rei Lear, a monumental peça de William Shakespeare (1564-1616), o velho monarca encontra-se exposto à fúria dos elementos, enquanto uma tormenta assola impiedosamente a paisagem. Rechaçado por duas filhas, Goneril e Regan, por elas escorraçado humilhantemente, Lear lança sua revolta contra a própria natureza: “O vento, a chuva, o raio não são minhas filhas! Não vos culpo, elementos, dessa ingratidão!”. Com essas palavras que o aproximam de um desses seres míticos, ancestrais, capazes de falar com os mais fundamentais princípios da natureza, o velho Lear começa finalmente a tomar consciência de sua condição: perdera o poder real ao dividir o reino entre suas filhas e entregara tudo às pérfidas Goneril e Regan, renegando a herdeira que realmente o amava e respeitava, Cordélia. De nada adiantara implorar para que não enlouquecesse: por seus erros e pelas tramas de suas filhas más, “feiticeiras perversas”, Lear enfrentará o deserto da loucura, a tormenta da derrota e o abismo do aniquilamento total.
Essa é a história que já foi descrita por especialistas na obra do Bardo como “um colosso em meio a suas realizações”. É a peça que o mais famoso shakespeariano de nosso tempo, o crítico Harold Bloom, afirmou conter uma grandeza que transcendia a própria literatura. É a peça que o leitor brasileiro recebe, agora, em nova e impressionante tradução de Lawrence Flores Pereira — já premiado com o Jabuti por sua versão do Hamlet —, acompanhada de um alentado ensaio introdutório assinado pelo tradutor e pela filósofa Kathrin Rosenfield, além de excelente aparato de notas textuais que tornam a experiência da leitura do Rei Lear um aprendizado acessível, profundo e prazeroso.
A experiência de ler uma obra teatral é fundamentalmente distinta daquela fruição da encenação para a qual esses trabalhos são pensados originalmente. Nos palcos, já se vão mais de 400 anos que atores e diretores têm aportado ao texto de Shakespeare as mais diversas interpretações e sentidos, fazendo com que a riqueza infinita de tantas cenas ficasse marcada na memória de gerações. Foi assim que as montagens teatrais encontraram recursos diversos para comunicar a plateias distintas, em épocas e sociedades tão diferentes quanto a Londres seiscentista e o Brasil atual, o gênio criador de Shakespeare e suas visões para o drama daquele rei, pai e velho homem sofrido. Desde interpretações cristãs, que acentuavam uma possível redenção final, até a profunda marca deixada pelo diretor Peter Brook, em sua clássica peça de 1962, que aproximou o mundo desolado e hostil da peça de Shakespeare do teatro do absurdo de Samuel Beckett, a formidável linhagem de montagens atesta a excepcionalidade do Lear.
Mas o que pode ser obtido nas encenações com recursos teatrais ou cinematográficos — a intensidade emocional que aumenta à medida que a decadência física vai se impondo na versão de Ian Mckellen para a Royal Shakespeare Company; a modernidade audaciosa da versão em filme com Anthony Hopkins para a Amazon Prime — precisa ser obtido pelo tradutor apenas com a letra do texto. Esse é o desafio enfrentado e vencido por Lawrence Flores Pereira: o texto revela ao leitor sua grandeza quase inabarcável, fazendo emergir um Lear poderoso e desmedido, mas também frágil e atormentado; humano em sua emotividade exacerbada e errática, mas revigorado por sua transformação em face dos descalabros que sofreu.
É assim que as palavras de Lear, na cena inicial, quando decide renunciar ao fardo do poder dividindo o reino entre as três filhas, expõem a natureza do homem contraditoriamente apegado ao poder, com retórica dissimulada e falsa: Lear aceita a bajulação de Goneril e Regan, e não é capaz de ver o amor real e íntimo de Cordélia. Suscetível, acaba por humilhar a filha que mais amava e que, assim julgava, agora traía sua afeição. O reino dividido; o rei sem poder, exceto nas aparências; as relações familiares corrompidas — em poucas cenas e com uma linguagem que oscila da formalidade artificiosa dos elogios falsos das filhas mais velhas à vulgaridade agressiva com que Lear desonra Cordélia, há uma intensidade trágica condensada.
Envolvido pelo feitiço shakespeariano, o leitor percebe o erro de Lear, que logo será chamado de “velho frívolo” por Goneril, que trama junto à irmã Regan; é levado a testemunhar a profunda ignorância de si mesmo que caracteriza o rei — tanto que caberá ao Bobo dizer-lhe: “Não deveria ter ficado velho antes de ficar sábio”; e subitamente vê seus sentimentos oscilarem, da revolta com a injustiça praticada por Lear para a identificação com as injustiças a ele infligidas. Em meio à tormenta, testando os limites da sanidade, Lear pronuncia as palavras que revelam o doloroso caminho da tomada de consciência: “Quando nascemos, choramos por aportar a esse vasto palco de loucos”. Só após a loucura Lear é capaz de conhecer a si próprio.
A família, o amor, o poder: é a totalidade do mundo que se apresenta no Rei Lear. E se esse mundo parece puro desespero, deve-se lembrar da pungente lição de amor da filha Cordélia, que retorna ao reino para tentar reparar as injustiças, apesar de tudo o que ela própria sofrera. Leitor algum jamais poderá esquecer a humanidade profunda que Shakespeare conseguiu conceber no reencontro de Lear com Cordélia — uma humanidade tão atemporal, tão primordial e tão verdadeira que apenas nesta obra em toda a literatura universal ultrapassou tudo o que a linguagem é capaz de dizer. Afinal, com que palavras seria possível imaginar a dor de um pai que perdesse uma filha assim? Não há palavras, e por isso a cena de Lear carregando Cordélia até hoje só tem rival nas representações de Maria segurando o corpo do Cristo. Não sendo um deus, Lear urra — um grito humano que cada página de Shakespeare libera energicamente a todos os leitores.
Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697