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Viviane Senna: ‘A desigualdade tem o rosto de uma criança’

O Brasil não tem dedicado esforços a essa etapa que deveria ser considerada a grande janela de oportunidades para a garantia de um futuro melhor

Por Viviane Senna*
Atualizado em 4 jun 2024, 15h42 - Publicado em 14 ago 2020, 06h00

É em meio a crises como a atual que problemas históricos marcantes de nosso país acabam vindo ainda mais à tona, atingindo feridas profundas que sempre existiram, mas que se tornam mais graves em circunstâncias muito adversas. Entre esses problemas está a imensa desigualdade brasileira, que a cada dia se desenha com mais clareza em nossa sociedade. Olhar para essa questão é também olhar para a infância, que pode ser considerada a etapa mais vulnerável da vida no Brasil.

É justamente na infância que a brutal desigualdade expõe uma de suas faces mais cruéis, ao aniquilar a possibilidade de futuro para um contingente tão significativo de brasileirinhos e brasileirinhas. Pois, no país, não bastassem as condições desiguais que já envolvem raça e gênero, discriminamos também por idade. Em nosso país, crianças não só representam a parcela mais pobre da população, mas também a menos amparada por investimentos realizados pelo Estado, de acordo com dados inéditos organizados pela Cátedra Instituto Ayrton Senna no Insper.

Segundo o estudo, liderado pelo economista Ricardo Paes de Barros, cerca de 20% de toda a população infantil brasileira, ou seja, mais de 5 milhões de crianças de 0 a 10 anos, faz parte da parcela mais pobre de nossa sociedade (representada pelos 10% com menor renda). Essa porcentagem cai para 10% entre jovens de 20 anos e para 1% entre idosos com 65 anos ou mais. Crianças representam, portanto, o maior porcentual de vulneráveis, considerando todas as outras faixas etárias da população.

São incontáveis as evidências científicas que mostram as implicações futuras que a ausência de atenção para essa etapa da vida pode ocasionar. Afinal, é na infância que importantes conexões cerebrais acontecem numa velocidade incrível, impulsionadas por estímulos físicos, socioemocionais e cognitivos. A precariedade dessa atenção, mais comum em ambientes comprometidos pela desigualdade social, tende a produzir efeitos negativos que se ampliam ao longo dos anos. Portanto, a infância deveria ser considerada a grande janela de oportunidades para a garantia de um futuro de maior qualidade nas mais diversas áreas da vida, assim como para a construção de uma sociedade brasileira mais inclusiva, produtiva e equitativa.

Infelizmente, o Brasil não tem dedicado todos os seus maiores esforços a essa etapa tão crucial. O estudo da Cátedra Instituto Ayrton Senna no Insper também identificou um gritante descompasso nos investimentos públicos dedicados às diferentes faixas etárias. Para se ter uma ideia, em nosso país os recursos destinados à população de 65 anos ou mais são seis vezes maior que o montante repassado às crianças, enquanto na grande maioria das outras nações pesquisadas essa proporção cai pela metade, ou seja, é apenas três vezes maior. Como consequência disso, crianças brasileiras que estão entre os 10% mais pobres de nosso país vivem com menos de 7 reais por dia, enquanto brasileiros de 65 anos que integram o grupo dos 10% mais ricos do país vivem com uma renda média 33 vezes superior, de 233 reais diários. A conclusão disso é um desequilíbrio contundente e preocupante: estamos fazendo um grande desinvestimento nas crianças, tornando ainda mais vulnerável a parcela mais desamparada de nossa sociedade, quando deveria ser priorizada em relação aos nossos cuidados, suporte e atenção.

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“Não bastassem as condições desiguais que já envolvem raça e gênero, discriminamos também por idade”

Para além desse quadro, é consenso entre especialistas que a pandemia do novo coronavírus poderá agravar ainda mais a atual disparidade. Parte do investimento que é feito diretamente na infância passa pela oferta do serviço da educação pública, algo que não tem necessariamente chegado às crianças mais pobres, especialmente durante esta crise atual. Afinal, parcela relevante entre elas nem sequer possui condições de prosseguir com as aulas a distância, seja pela falta de estrutura tecnológica, seja pela ausência de estrutura familiar ou de rede de apoio. É preciso também considerar que o cenário pós-pandemia tende a agravar as dificuldades, levando em conta a possibilidade de aumento no abandono e na evasão escolar, especialmente num ambiente seriamente comprometido pelo desemprego e subemprego em meio à retração econômica.

Um caminho possível para virar esse jogo e que ajudaria a reparar as consequências futuras decorrentes das nossas más escolhas em relação à infância seria, minimamente, garantir os benefícios intangíveis da educação. Afinal, a escola é um poderoso meio de ascensão social e de diminuição das disparidades, e só estará cumprindo efetivamente seu papel quando for oferecida com qualidade. Mas, infelizmente, isso é algo que também não vem acontecendo por aqui. Basta olhar os dados da última Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), que mostram que mais da metade dos alunos que concluem o 3º ano do ensino fundamental estão abaixo do desempenho mínimo esperado para leitura e matemática, aos 8 anos de idade.

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Isso só reforça o desafio gigantesco que temos como poder público e sociedade. Se soubermos nos mobilizar, toda essa adversidade que vivemos pode ser também uma oportunidade para nos reinventarmos, redesenhando nossas escolas em direção a uma aprendizagem com mais valor e significado. Mas, se nada for alterado nesta dura realidade, continuaremos condenando duplamente as nossas crianças, especialmente as mais vulneráveis, tanto pela ausência de investimentos robustos e esforços certeiros quanto pela nossa incapacidade de oferecer a elas uma educação de qualidade. É fundamental reforçar que não cuidar da infância é simplesmente descartar o futuro. Assegurar a ela a oferta irrestrita da educação pública comprometida com o desenvolvimento pleno é muito mais do que um direito garantido em lei. É também a saída de compensação dessa clara desigualdade que afeta milhões de crianças brasileiras. Não podemos mais naturalizar e nos acostumar com essas diferenças tão latentes, ou continuaremos a limitar as chances de um futuro cheio de oportunidades e possibilidades de escolha para as novas gerações de brasileiros.

*Viviane Senna é empresária e presidente do Instituto Ayrton Senna

Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700

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