Lá se vai o tempo em que a pandemia chacoalhou os vários escaninhos da existência humana, acelerando, no caso da sala de aula, um processo já em curso: o aprendizado passou a se dar cada vez mais com a ajuda das telas, seja a do computador, seja a do smartphone. Na clausura da quarentena, elas tiveram o mérito de manter a educação a distância, com todos os desafios e tropeços envolvidos na tarefa. Quando a vida retomou o velho normal, os celulares haviam sido alçados a um protagonismo como nunca antes. O período em que as jovens gerações se mantêm debruçadas sobre eles disparou 240%, incluindo aí os estudos, mas também uma série de atividades que transcorrem em inesgotáveis horas de navegação. Eis que escolas mundo afora esbarram agora com um dilema: como frear o vasto uso não educativo do aparelhinho que é quase uma extensão do braço e do cérebro da garotada e, em paralelo, preservá-lo no que é verdadeiramente útil ao saber?
Muitos países têm respondido a essa questão de forma radical, obrigando os estudantes a manter o smartphone dentro da mochila — decisão difícil de ser tomada e mais ainda de ser implantada. Em geral, a medida chega em forma de recomendação às escolas, como na Alemanha, na Itália e, mais recentemente, no Reino Unido e na Holanda, cujas barreiras se estenderão a tablets e smartwatches, a partir de janeiro de 2024. Ali, terra em que as liberdades individuais são abraçadas com todo o vigor, a ideia é bem acolhida, desde que os colégios possam ter voz sobre como pôr o plano em prática — ponto que atiçou uma acalorada polêmica. “Existe um consenso entre educadores sobre como o celular pode desviar a concentração dos alunos, mas são as escolas que devem criar as normas conforme suas particularidades”, disse a VEJA Stan Termeer, porta-voz das instituições holandesas de ensino médio.
A dose certa das restrições e a trilha para torná-las eficazes é justamente o que separa modelos exitosos de iniciativas que não passam de boa intenção. Enquanto China (onde os aparelhinhos não podem ultrapassar os portões) e França (que baniu seu uso nas escolas por lei) apertam o cerco sem grande resultado, e com muita gente burlando a regra, em nações menos rígidas as barreiras têm surtido mais efeito. Finlândia e Alemanha, por exemplo, amenizam a vigilância de acordo com a idade do aluno — quanto mais velho for, maior o uso que fará do smartphone, para fins pedagógicos ou mesmo no recreio. No Brasil, o debate é candente, e os colégios vêm se mexendo. Em agosto, o prefeito carioca Eduardo Paes assinou um decreto que obriga os estudantes da rede municipal a manter seus celulares bem guardados, mas abre uma bem-vinda brecha para que o professor possa requisitá-los quando são valiosos à lição, como ocorre noutros pedaços do globo.
Nesses lugares em que os aparelhinhos ora precisam ficar fora de combate, ora são autorizados, há um bom equilíbrio, mas é mais complicado fincar fronteiras. No Colégio Stocco, em São Paulo, é pedido às turmas que repousem o celular em caixas com divisórias que levam o nome de cada um. Se o mestre avalia que acrescentarão substância ao percurso do aprendizado, são retirados do compartimento. “Muitos ainda resistem às normas, numa postura esperada, de testar limites”, afirma a orientadora Débora Lulo. Mas o duelo vale a pena. Um conjunto de pesquisas analisado pela Unesco sublinha evidências científicas de que os celulares baixam a concentração e a curiosidade, e levam à perda de sono, impactando o desempenho acadêmico. “É um mito sustentar que o cérebro é multitarefas. Está comprovado que as telas competem com outros estímulos, tirando o foco do professor e da aula”, pontua Ana Carolina Coan, da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil.
Há ainda abundantes relatos de que a presença de smartphones no ambiente escolar faz subir os casos de cyberbullying, uma praga em toda parte. Cabe às escolas ficar atentas, mas os pais também têm seu papel, podando o tempo de tela em casa. “Sabemos que muitos abusam delas e não estão preparados para educar os filhos digitalmente”, cutuca o pediatra Daniel Becker. “É preciso que estejam cientes dos riscos, inclusive cognitivos”, alerta. Ao reparar que a filha de 13 anos andava reclusa, revelando ansiedade e falta de foco, a psicóloga Ana Lúcia Thomaz, 46, resolveu reservar alguns dias para programas em família 100% off-line, em rigorosa dieta digital. “Percebi que ela gastava tempo demais com as redes”, diz a mãe, que externa preocupação semelhante à de outras. “Vetar o celular em todas as dependências escolares acaba por dificultar a comunicação com os filhos.”
Para esta geração de nativos digitais, que sempre viveu cercada de telas, desgrudar do celular pode soar uma privação dolorosa. “Existe um vínculo com o prazer, a navegação aumenta a liberação de dopamina no cérebro”, explica o especialista Igor Lemos. Por vezes, o uso excessivo se reflete na vida social. “A socialização no mundo real corre o risco de ser negligenciada quando usamos conexões digitais para tudo”, avalia Nigel Winnard, diretor da Escola Americana, no Rio de Janeiro, onde os mais velhos são autorizados a sacar o celular da mochila no recreio. Mãe de um adolescente de 16 anos e professora, Jane Queiroz tem a visão de quem caminha sobre os dois lados da arena. Em suas aulas, ela incentiva os alunos a entrar em aplicativos educacionais que animam a rotina, mas é bem realista quanto às limitações de controlar a turma. “Eles põem os celulares entre as pernas e fingem prestar atenção. Meu próprio filho já foi advertido”, relata. Ainda falta chão para se alcançar o equilíbrio. O que não dá, por óbvio, é empurrar a tecnologia para debaixo do tapete.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868