Sempre valorizei a educação e a oportunidade que tive de estudar, mesmo vindo de uma família de poucos recursos em Bauru, no interior de São Paulo. Minhas duas irmãs e eu frequentamos a escola pública e minha mãe, que nos criou sozinha, enfatizou a vida toda a importância dos livros. Não era uma grande aluna, mas amei aquele período. Ainda trago na memória o cheiro do pátio e dos corredores. Ingressar numa universidade foi um sonho que sempre me acompanhou, mas tive de emendar a escola com o trabalho, e não havia tempo nem dinheiro para uma faculdade. Quase três décadas depois, finalmente passei no vestibular neste ano e entrei para o curso de biomedicina de uma instituição privada em Bauru mesmo. A felicidade de pisar ali foi tão intensa que nem a violência da qual acabei sendo alvo, com colegas de turma me humilhando por ser mais velha que os outros, abalou meu objetivo de ter um diploma e seguir avançando.
Quando as aulas começaram, há um mês, sabia que meu mundo se abriria. O primeiro dia teve um sabor especial, o reencontro com a sala de aula em uma etapa da vida em que já não imaginava mais estar lá. Me sinto meio enferrujada, mas a sensação vai passando. Até hoje, me pego sentada e pensando no que conquistei. Não é pouco. De vez em quando, chego mais cedo, só para ficar andando pelo câmpus e olhando os laboratórios. Foi depois da pandemia que a ideia da universidade voltou à minha cabeça. Eu era dona de uma loja de roupas e, com a crise, não tive opção senão fechar. Precisava de um recomeço e, com o apoio de todos à minha volta, cá estou, na condição de caloura. É um esforço. Minha família ajuda a bancar a mensalidade.
No fatídico dia em que começou a circular um vídeo na internet cheio de ofensas contra mim, estava me preparando para apresentar um trabalho sobre anatomia. De repente, fui abordada no corredor por duas meninas, que me perguntaram: “Você é a Patrícia, né? Viu um vídeo de três alunas daqui te atacando, chamando de velha?”. Não sabia de nada, mas o tal vídeo, que uma delas postou e viralizou, era um verdadeiro horror. “Como desmatricula uma colega de classe? Velha, já era para estar aposentada”, diziam, debochadas. Aquilo me desestabilizou. Na hora, senti ânsia de vômito, tive tontura, dor de cabeça, tudo muito rápido. Me pegou de surpresa. Nunca tinha sofrido nada desse tipo nem conhecia as garotas (elas saíram da faculdade nos últimos dias porque estavam sendo ameaçadas nas redes sociais). Me bateu uma tristeza profunda, mas não paralisei. Com o apoio de colegas, entrei na sala e entreguei meu trabalho. O episódio acabou sendo um gatilho para algo que mudou dentro de mim: quero, de alguma forma, ajudar a combater o preconceito que persiste contra pessoas mais velhas, o etarismo.
O mais legal é que, depois do ataque, surgiu uma forte corrente de solidariedade. Outras pessoas que chegaram à universidade mais tarde na vida se pronunciaram nas redes. No dia seguinte ao infeliz episódio, fui acolhida por estudantes e professores. Recebi até flores e chocolates. Eu não concordo com o caminho da violência e não me sinto velha. Ao contrário: estou no auge. Idade é só um número, não? O que conta é a vontade de viver. Essa história toda, na verdade, me motivou ainda mais. Agora, só paro os estudos se eu morrer. Quero fazer iniciação científica, pós-graduação, doutorado — tudo a que tiver direito. Um dia, aliás, ainda pretendo ter um laboratório meu. As pessoas devem perseguir o que querem, não importa a faixa etária. Nunca é tarde para sonhar e correr atrás. É o que eu estou fazendo. Se ao levantar a bandeira contra o preconceito eu conseguir ajudar quem também sofre dele, contar minha história vai ter valido a pena.
Patrícia Linares em depoimento dado a Gustavo Silva
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834