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Escolas sem livros, sem quadra, sem aulas

Enquanto projeto Escola sem Partido domina debates na educação, professores e especialistas denunciam quadro de precarização do ensino brasileiro

Por Giovanna Romano, Diego Freire Atualizado em 12 nov 2018, 11h41 - Publicado em 9 nov 2018, 22h46
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  • Quem se dispuser a sair à caça de livros doutrinários nas escolas públicas brasileiras terá um empecilho crucial, mas não exatamente uma surpresa: em 18,9% das unidades das redes estaduais de ensino fundamental e em 61,1% das municipais não há biblioteca (ou mesmo uma simples sala de leitura).

    Tais números, recentemente divulgados pelo Ministério da Educação, são espantosos — ou deveriam ser, em qualquer discussão sobre a qualidade da educação oferecida pelo governo. Quem se lembra, porém, de ter ouvido discursos inflamados ou visto posts nas redes sociais de parlamentares a respeito da escola sem livro, sem aula, sem instalações adequadas, sem quase nada?

    Tomem-se apenas as instituições de ensino fundamental comandadas pelos municípios, que em geral apresentam as maiores deficiências. Somente 28,6% delas possuem quadras de esportes, e o número de parquinhos chega a escassos 14,3%. Pouco mais da metade (52,6%) têm internet.

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    Os colégios voltados ao ensino médio apresentam índices melhores, mas ainda assim desoladores para alunos que deveriam estar se preparando para o Enem e o vestibular. Laboratórios de ciências são realidade em 28,2% das escolas municipais e em 39,2% das estaduais. Como os estudantes podem competir em condições razoáveis nos processos seletivos de boas universidades? “O ambiente, por si só, pode ser educador”, ressalva Neide de Aquino Noffs, da Faculdade de Educação da PUC-SP. “A responsabilidade não é só do governo. Há gestores sem recursos que conseguem desenvolver brinquedotecas lindas fazendo parcerias com a comunidade.”

    No plano geral, contudo, a deficiência é a regra atávica. Um caso recente, símbolo de todo o restante, é o da escola estadual paraibana Antônio Pessoa, em João Pessoa. A reforma do prédio seria uma boa notícia, mas as aulas estão paralisadas há mais de dois meses devido às obras. Na semana que vem as atividades serão retomadas, mas em outro endereço. Até lá, não há professor presente para ensinar — quanto mais para ser filmado.

    Em contato com a reportagem, a Secretaria de Estado da Educação da Paraíba definiu como uma “necessidade histórica” as intervenções realizadas no colégio — no piso, paredes, telhado, banheiros, rede elétrica e hidráulica, além de adaptação da infraestrutura para promover acessibilidade. A reforma teve início no dia 3 de setembro, quando os 240 matriculados (entre estudantes do ensino fundamental e da modalidade educação de jovens e adultos) receberam dispensa.

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    Desde então, as obras enfrentaram imprevistos, como a necessidade de se recuperar toda a estrutura do telhado. Após dez semanas de indefinições e revolta de pais, os alunos prejudicados serão realocados para a Escola Cidadã Integral Técnica Maria do Carmo Miranda, com aulas em horário integral (manhã e tarde) para compensar o conteúdo perdido.

    Não é só na Paraíba

    O colégio de João Pessoa não é um caso isolado e reflete o cenário da educação pública brasileira. Em Rondônia, por exemplo, a escola municipal José Carlos Neri, localizada no município de Guajará-Mirim, foi interditada pelo corpo de bombeiros nesta semana, por conta da não adequação ao Projeto SPDA — Sistemas de Proteção contra Descargas Atmosféricas —, determinado pelo Ministério Público para minimizar riscos de incêndios, explosões, danos materiais e exposição a descargas elétricas, incluindo raios. 

    Ao longo da semana, a reportagem colheu depoimentos de 14 professores de educação básica (nível que compreende os ciclos de educação infantil, ensino fundamental e médio) de instituições de ensino das redes pública e estadual. Todos relataram situações de precarização em suas instituições, incluindo episódios como falta de merenda em dias ou semanas inteiras (problema atenuado por “vaquinhas” de professores para comprar bolachas a estudantes), alagamento em instalações, bibliotecas fechadas para se tornarem salas de aula, escolas inteiras com apenas um banheiro, superlotação, vandalismo de alunos e uso de drogas em salas de aula, além de falta de cadeiras e outros materiais básicos, entre outras deficiências. Desgastes na infraestrutura, como vidros quebrados e lâmpadas que não funcionam foram outra denúncia recorrente.

    A maioria dos entrevistados solicitou anonimato, temendo retaliações. Uma exceção foi Maria Beatriz Lugão, 56 anos, professora de artes e presidente do conselho escolar do Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) Pablo Neruda, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Funcionária do colégio desde a inauguração, em 1985, Lugão relata a dificuldade em administrar o ambiente escolar diante da falta de funcionários.

    “A cada dia faltam mais funcionários, afinal o Estado não abre concurso há muito tempo e todos estão se aposentando. A escola hoje não tem porteiro, e inspetores são poucos. Nós temos quatro funcionários de limpeza para uma área enorme, na beira da estrada. São 900 alunos em três turnos (manhã, tarde e noite). Sem funcionário, sem porteiro, sem inspetor, sem professor, fica inviável”, relatou a docente.

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    Um das questões mais preocupantes, na visão da professora, é a insegurança. Ela relata que o centro educacional foi assaltado no primeiro semestre durante o horário de aulas, sem poder de reação para os presentes. “A escola, hoje, não tem porteiros, mesmo localizada em uma área de risco. Não temos segurança nas portarias e não conseguimos saber quem está entrando e saindo”, conta.

    No mesmo estado, em Duque de Caxias, a professora de história do Colégio Estadual Guadalajara, Helenita Bezerra, de 52 anos, também alerta para um quadro generalizado de violência. “As escolas estaduais estão sem vigias. Nós (representando os colégios do estado) estamos sem porteiros. Isso não é só coisa do lugar que eu trabalho, é em toda a rede”, completa.

    A Secretaria do Estado da Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC), por meio de nota, informou que “aplicou, neste ano, cerca de 200 milhões de reais em cotas extras diretamente para as escolas, sendo um valor dez vezes maior do que o equivalente que foi aplicado nos últimos anos.”

    A secretaria acrescentou que, além das verbas regulares, o CIEP Pablo Neruda recebeu, neste ano, cerca de R$ 150 mil e o Colégio Estadual Guadalajara mais de R$ 120 mil em cotas extras para reformas e manutenções emergenciais e disse ser atribuição das direções das escolas definirem as prioridades para investimento desses recursos.

    “Em relação a porteiros, a Seeduc adota os mesmos procedimentos da rede municipal e de diversas unidades da rede privada. Além disso, sempre quando há necessidade, as escolas contam com o apoio do Batalhão de Polícia Militar que atua em cada região e com a Delegacia de Polícia local.”

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    Até o momento da conclusão desta reportagem, a Secretaria Municipal da Educação de Guajará-Mirim, em Rondônia, não se pronunciou.

    Mau uso dos recursos

    Imersa há mais de cinco décadas no universo educacional brasileiro, Neide de Aquino Noffs divide responsabilidades pela precarização nítida em escolas espalhadas por todo o país: “Falta investimento do governo mas também vontade política dos gestores na ponta”, comenta a pesquisadora da PUC-SP. Embora lamente um direcionamento equivocado de recursos por parte de governantes, “sem valorizar a educação como um todo”, Noffs identifica falta de iniciativa e preparo dos gestores dos próprios colégios.

    “Eu sei que algumas escolas são precárias, mas quando há um diretor ativo temos menos conflitos. Por exemplo: se a escola não tem um laboratório de informática, o gestor tem que conseguir. Ele pode buscar saídas criativas, como parcerias com a comunidade ou ir para outro lugar, mas precisa ir atrás”, prega a educadora. Pela análise, falta efetividade em medidas comumente adotadas: “Alguns acham que podem resolver com abaixo-assinado, mas não… não é coisa de passeata, tem que saber reivindicar usando a hierarquia: ir à divisão regional, ao conselho municipal… Quando uma esfera não é atendida, cabe ao gestor buscar outra. Quem não é esforçado, não consegue mesmo”.

    Segundo dados fornecidos pelo Ministério da Educação (MEC), o orçamento do órgão para a educação básica (incluindo administração direta e indireta, além do Fies e Cota parte do Salário Educação) saltou de 34,4 bilhões de reais, em 2007, para 138,5 bilhões de reais, em 2017. Ex-secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro e hoje diretora da TV Escola, Regina de Assis considera “vultoso” o investimento que o ministério recebe para distribuir a estados e municípios, mas lamenta que muitas vezes esses recursos sejam “desperdiçados”.

    “Esse é o entrave do Brasil: o recurso público destinado à educação é bom, mas, muitas vezes, mal administrado”, constata Assis, que também clama por mais profissionalismo na gestão: “As secretarias, assistidas pelo MEC, têm a obrigação de desenvolver programas de formação de gestores. Além disso, fazer da Secretaria de Educação um cabide de emprego para favores políticos é um grande erro. Ela não pode ser parte da política partidária. Os gestores escolhidos têm que ser do ramo da educação”.

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    Sem professores

    Na visão das especialistas, a má administração culmina em desvalorização por parte da própria comunidade. “A gente ainda assiste a muitos problemas de degradação e depreciação do prédio, pura dilapidação do patrimônio público. É uma questão de educação. A gente trabalha dia após dia nas escolas. Precisamos que estudantes e famílias entendam que esse é um patrimônio público que pertence a todos”, destaca a ex-secretária da prefeitura carioca.

    As condições deploráveis do ensino público não afetam apenas os estudantes, muitas vezes indiferentes à importância de conservação das escolas. Outra face do quadro de abandono é a desmotivação dos professores, que acaba por se converter em absenteísmo — um quadro de constantes ausências dos docentes. Regina de Assis considera esse um dos mais graves problemas e não vê solução que não passe pela melhoria das condições de trabalho: “A falta de professores, ocasionando aulas vagas, tem muito a ver com as questões do salário e dos planos de carreira. O professor precisa de um salário digno e um horizonte para se motivar. Enquanto eles tiverem que dar aula em duas, três escolas para poder pagar aluguel e se vestir, sentirão desânimo”.

    Ao longo da apuração desta matéria, colhendo depoimentos de professores sobre as condições de trabalho e infraestrutura nas escolas, dois deles responderam à reportagem em horários próximos a uma consulta médica, comentando sobre problemas de saúde decorrentes da rotina estressante. “Motivar é um desafio enorme. Meu trabalho é entusiasmar as pessoas que estão na educação para que ela possa melhorar, com esforços individuais e coletivos. Mas falta muita coisa, como dar aula sem infraestrutura? Falta planejamento na educação brasileira”, lamenta Neide Noffs.

    “Na Espanha, por exemplo, quando uma criança nasce ela já é registrada e o governo sabe em que áreas devem ser construídas escolas nos próximos anos. Aqui, não. As verbas se dispersam e não há organização. Os investimentos começam e estacionam. Se percebem que falta uma escola, podem até correr para erguer um prédio, mas é uma improvisação, sem estrutura”, complementa.

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    Nível de escolaridade dos professores que lecionam no ensino fundamental I e II (Arte/VEJA)
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    O cenário se agrava quando notamos que as condições pouco estimulantes levam as redes municipal e estadual a contratarem, muitas vezes, professores com baixa escolaridade. O Censo Educacional de 2017 traz um Indicador de Adequação da Formação Docente, que  sintetiza a relação entre a formação inicial dos professores e as disciplinas que lecionam (ou seja, checa se um professor de matemática, por exemplo, tem graduação na área). 

    Na rede estadual, o melhor resultado do indicador é para a disciplina de educação física, contando com 69,8% dos professores propriamente formados. O pior índice é para as aulas artes, com apenas 31,5% dos docentes preenchendo o requisito. 

    De forma geral, o Centro-Oeste, Sul e Sudeste (com exceção do Rio de Janeiro, que destoa negativamente na análise) apresentam um maior percentual de disciplinas ministradas por professores com formação adequada. O Norte e o Nordeste são as regiões que apresentam menor percentual de professores com um nível de alta escolaridade, principalmente para o ensino fundamental, ainda de acordo com o levantamento mais recente do Inep.

    Prioridade do governo

    Nas últimas semanas, a proposta de educação com maior cobertura nacional tem sido o projeto Escola sem Partido, cuja votação pode ser realizada nas próximas semanas pela Câmara. Grupos contrários e favoráveis têm se manifestado arduamente em redes sociais, como o Facebook, pressionando uma posição do Governo. Tendo em vista o contexto decadente das escolas municipais e estaduais, seria essa a prioridade da educação?

    Para a professora fluminense Maria Beatriz Lugão Rios, que denunciou os problemas infraestruturais e de segurança do Centro Integrado de Educação Pablo Neruda, a agenda pública deveria focar nos problemas “reais” das escolas: “A falta de estrutura, falta do profissional, desvalorização do magistério”. Para ela, o Escola sem Partido faz parte de um debate conservador que não é a necessidade real da escola.

    “O Escola sem Partido acaba criando uma polêmica que tira o foco dos principais problemas. A agenda da escola pública hoje é qualificar as instituições, ter uma estrutura condizente com a necessidade da educação, contar com internet de ponta e tecnologia, dispôr de professores para todas as disciplinas, além de ter um ambiente confortável e climatizado”, relata a professora da rede estadual do Rio de Janeiro. De modo enfático, ela conclui que o texto em pauta na Câmara é uma “cortina de fumaça” para outras demandas.

    A presidente da União Paulista Estudantil de Secundaristas (Upes) possui opinião semelhante. Laís do Vale, de 19 anos, se aproximou do movimento estudantil em 2016 e, no começo deste ano, foi eleita para presidir a organização. Para a jovem, o projeto “é uma ilusão”. “Nós temos certeza que as pessoas que pensam o projeto não conhecem a realidade da escola pública. Se conhecessem, iriam saber que mal temos aula de filosofia e sociologia, quanto mais uma doutrinação marxista”.

    O projeto Escola sem Partido já foi defendido publicamente pelo presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) e é uma das principais bandeiras da deputada Ana Caroline Campagnolo (PSL-SC), que postou nota nas redes sociais convocando alunos para filmarem seus professores e denunciarem o que denomina como “professores doutrinadores”. A reportagem tentou contato com a assessoria da deputada, mas não obteve resposta.

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