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Maria Inês Fini, ex-presidente do Inep: o Enem precisa mudar

O exame atual é um amontoado de conteúdos que não mede se o aluno é capaz de sair do campo da memorização, juntar peças e chegar à solução de problemas

Por Maria Inês Fini*
Atualizado em 4 jun 2024, 15h12 - Publicado em 8 nov 2019, 06h00
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  • Nenhuma política educacional mobiliza tanto a sociedade brasileira quanto o Enem. Especialistas, professores, diretores de escola, pais e alunos têm já cedo na vida o exame no horizonte. Desde sua criação, em 1998, momento do qual participei ativamente, ele vem trazendo boas contribuições para a necessária reflexão sobre os rumos da sala de aula. Funciona, afinal, como um espelho para colégios espalhados por todo o país, que se miram no que é cobrado na prova para estruturar suas grades curriculares. Mas existe aí uma questão essencial, que muitas vezes é ofuscada pela discussão mais periférica — e tão acalorada quanto contraproducente — sobre a ideologia no Enem: o que importa mesmo é saber se o exame está sendo um bom guia para as escolas no Brasil. E, por ser demasiado conteudista, hoje não está.

    O Enem passou por várias fases e acabou sendo beneficiado pela consolidação de uma cultura de avaliação do ensino no Brasil da década de 90 para cá. Até 2008, não funcionava como um passaporte de ingresso à universidade. Seu propósito era medir se o aprendizado de cada estudante condizia com as expectativas traçadas pela Lei de Diretrizes e Bases, um parâmetro para as escolas. O exame valia-se de uma concepção mais abrangente de aprendizagem, já discutida por muitos países nos anos 1980. Testava o desenvolvimento das estruturas de pensamento que permitiam a assimilação dos tradicionais conteúdos escolares de forma ampla. Na prática, eram 63 questões que giravam em torno de situações-problema interdisciplinares e devidamente contextualizadas. Abordavam temas científicos, artísticos e filosóficos.

    O primeiro avanço trazido pelo Enem veio com a possibilidade muito moderna que o exame trouxe de avaliar competências e habilidades em lugar de apenas conteúdos, linha sintonizada com a vanguarda da educação. Outro impacto positivo foi poder usar os resultados da prova em processos de baixa concorrência, de seleção para programas sociais do governo e como primeira fase dos mais concorridos vestibulares do país. Até esse ponto, o efeito do Enem nos currículos do ensino médio ainda era moderado. É a partir de 2009 que se inaugura uma segunda fase do exame, com nova metodologia de análise de resultados, e ele vira um vestibular nacional, aceito por quase todas as universidades públicas e particulares do país.

    A prova terá de se transformar para testar uma natureza de conhecimento afinada com o século XXI

    A prova passa então a cobrar um acumulado de conteúdos. Antes, eram testadas 21 habilidades, em torno das quais se organizavam as 63 questões da prova. Elas deram lugar a quatro conjuntos de trinta habilidades — ao todo 120, portanto. E o exame se agigantou: ficou com 180 questões em cada uma das quatro áreas de conhecimento. Para perplexidade de muitos teóricos, à vasta lista de habilidades — já suficientemente imensa — foi acrescida uma relação de conteúdos. Era o retorno a uma prova mais tradicional, que demanda memorização de soluções para problemas conhecidos — uma volta atrás. Aquilo de que os jovens precisam é conseguir juntar peças de distintas disciplinas à base de raciocínio lógico para equacionar questões às quais nunca foram apresentados. É isso que o mundo do trabalho busca hoje, globalmente.

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    Com este Enem, empresas especializaram-se em orientar alunos para o exame oferecendo cursinhos e simulados, numa franca demonstração de que o ensino médio, como estava organizado, não prepara para os testes. Mas treinar para a prova, é bom lembrar, não significa dar a melhor educação, uma vez que o exame, como já disse, ainda não alcançou as exigências deste século. O Enem e o ensino médio precisam mudar. E espero que estejamos nesse caminho. No fim de 2018, configurou-se um conjunto de conquistas para a educação brasileira com a primeira implementação de uma base comum curricular, a BNCC — algo que outros países já têm há tempos. Essa base serve de farol para escolas públicas e particulares, com metas ano a ano sobre o que o aluno deve aprender. Ela foi homologada em 2017, para a educação infantil e o ensino fundamental, e, em 2018, para o ensino médio.

    O que interessa aqui aos pais é saber que a BNCC prevê que os currículos se reorganizem por competências e habilidades (raciocínio lógico, capacidade de argumentação, organização de ideias, interpretação), associadas aos objetos de conhecimento (novo nome para o bom e velho conteúdo). A base enfatiza que o desenvolvimento de competências e habilidades socioemocionais (traquejo para trabalhar em equipe, resiliência, enfrentamento do novo) esteja alinhado ao lado cognitivo — o das disciplinas. Ambos devem ter o mesmo peso, como reza a cartilha do ensino moderno. Nos velozes tempos atuais, o professor precisa se valer de metodologias ativas que sacudam a sala de aula, contemplando as recentes tecnologias.

    Essa é a concepção de uma educação integral. E o Enem de hoje está ainda distante dela. Ele precisa ser repaginado para testar as habilidades de um estudante formado em outro tipo de escola. O que está previsto por lei para o ensino médio, esse mesmo que espanta tantos estudantes dos bancos escolares, é um modelo afinado com o que há de mais bem-sucedido no mundo — um sistema que permita a jovens de diferentes interesses, ambições e disponibilidades escolher entre vários itinerários dentro da escola. Os alunos terão uma base comum — 1 800 horas de currículo igual para todos. A partir daí, o estudante que preferir investir em uma formação mais técnica terá essa oportunidade, assim como aquele que quiser seguir uma abordagem mais acadêmica também encontrará uma alternativa. Há ainda os que se identificam com a área de humanas e outros com predileção pelas ciências exatas — cada qual poderá despender mais tempo naquilo que o seduz intelectualmente. Com a nova escola desenhada — e a implementação dela será gradual em estados e municípios —, está riscado o futuro para o Enem, que terá de se modificar para medir outra natureza de conhecimento. Os desafios e prazos estão estabelecidos para este novo ensino médio. As parcerias comprometidas. É a favor do exame (e não contra ele) que a sociedade precisa se movimentar para inová-­lo e manter seu papel na democratização do acesso ao ensino superior. Não custa lembrar que o Enem pede um olhar técnico, que o faça fincar os pés na modernidade, e não ideológico. Não podemos perder a chance de alçar este voo rumo ao século XXI.

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    * Maria Inês Fini, professora, criadora do Enem e ex-presidente do Inep, órgão do MEC responsável pela prova

    Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660

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