Cidades se voltam à opinião das crianças para buscar melhorias
Municípios mundo afora começam a criar conselhos para ouvir a opinião dos pequenos sobre o local onde vivem — uma aposta em que todos podem sair ganhando
Na Idade Média, crianças eram vistas como pequenos adultos, humanos com capacidades reduzidas de trabalho, mas não de todo inaptos a ele. Daí serem recrutadas para tarefas diárias e braçais, o que a arte daquele tempo retrata com pinceladas certeiras. A ideia de infância só veio a germinar nas sociedades europeias pós-Renascimento, consolidando-se no século XVII e refletindo-se inclusive na divisão das populações por faixa etária. Essa reviravolta trouxe uma nova vida aos seres em plena formação, nos quais foi reconhecido um olhar sobre o mundo muito próprio: estudos apontam nas jovens gerações uma percepção do entorno livre das amarras que domesticam a visão dos mais crescidos e uma elevada sensibilidade. E eis que, nos dias de hoje, esse modo mirim de enxergar as engrenagens que movem a humanidade começa a ser percebido em cidades espalhadas pelo globo como algo valioso, até para a formulação de políticas públicas. Não quer dizer que a garotada esteja tomando o poder nem deixando sua condição infantil — o que não seria desejado —, mas, sim, sendo ouvida por gente grande.
Uma nova pesquisa da Unicef conduzida em 21 países, o Brasil entre eles, mostra que 58% das pessoas aprovam a ideia de que a opinião da turma que está dando seus primeiros passos não deve ser desprezada por líderes políticos, pois acrescenta um ângulo diferente ao rol já conhecido. A Europa vem sendo pioneira ao trazer isso à prática, com experiências de crianças constituindo conselhos em países como Portugal, Espanha e Alemanha. Através deles, seus palpites chegam a autoridades e governantes. A prefeitura do Porto, a segunda mais populosa cidade portuguesa, toca há dois anos um programa em que uma meninada entre 6 e 12 anos registra em cadernos o que pensa do lugar onde moram e como imaginam que ele possa se tornar melhor. As respostas estão sendo minuciosamente analisadas para que dali se extraia um caldo para inspirar mudanças. “Elas sugerem uma cidade com mais praças e parques e amigável aos pedestres, reforçando a necessidade da transição para espaços urbanos mais acolhedores”, conta o cientista social Carlos Mota.
O exercício precoce da cidadania, dizem os estudiosos, ajuda a impulsionar habilidades essenciais, como a de trabalhar em equipe, inventar e pôr ideias em prática, liderar e compreender o sentido de coletividade. Há cinco anos, o município paulista de Jundiaí envereda por essa trilha, ao manter um Comitê das Crianças constituído por estudantes entre 9 e 11 anos que chegam lá por sorteio. Eles levam a missão mais a sério do que muito adulto. De suas criativas cabeças surgiu um turbilhão de propostas já trazidas à realidade: ruas foram fechadas para carros e se converteram em áreas para brincar, certas atividades escolares passaram a transcorrer ao ar livre e os próprios colégios municipais derrubaram paredes para encurtar a distância entre os alunos e a natureza — uma forte demanda deles. A última do conselho mirim foi capitanear na pandemia uma campanha pró-vacinação, que resultou em um vídeo amplamente assistido e curtido. “Fizemos isso porque vimos que muita gente não queria se vacinar”, explica Victor Prado, do alto de seus 11 anos. Os efeitos do conselho para ele e seus colegas se desdobram em outros campos. “Meu filho era tímido e hoje faz questão de expor sua opinião sobre tudo”, relata a mãe, Lisiane Prado.
Existe um conceito moderno disseminado entre urbanistas de que adaptar uma cidade a seus pequenos habitantes tende a fazê-la mais aprazível a todos. Eles gostam de calçadas generosas e de espaços para conviver, longe da sinfonia das buzinas. “Exemplos concretos apontam que, quando meninos e meninas são ouvidos e a cidade é pensada levando em conta sua presença, a qualidade de vida geral sobe”, afirma a VEJA o pedagogo italiano Francesco Tonucci, autor do livro Cidade das Crianças. Em Rosário, na Argentina, representantes da ala infantil se reúnem por iniciativa da prefeitura uma vez por ano, sempre instados a refletir sobre como melhorar sua vizinhança. O pleito de haver mais lugares para brincar e abundância de verde levou, por exemplo, a um vasto plantio de árvores do qual as próprias crianças tomaram parte, em um ciclo virtuoso que beneficia ao mesmo tempo a elas e ao ambiente em que estão imersas.
Envolver a população ultrajovem, ainda que de forma pontual, lhe dá bases para desenvolver algo fundamental para toda a vida: um senso de responsabilidade que não se atém às fronteiras de casa. Em Freiburg, uma vibrante cidade universitária na região alemã da Floresta Negra, foi criado, com sucesso, o programa Detetives do Bairro, em que as crianças percorrem com lupa as ruas à caça de itens passíveis de melhorias. “É um jeito de entenderem desde cedo que podem alterar a realidade a seu redor”, diz Cláudia Vidigal, à frente do braço brasileiro da fundação holandesa Bernard van Leer, justamente voltada para projetos que chamam as crianças a pensar o planejamento das cidades, mirando décadas à frente. Afinal, é nas mãos desses pequenos grandes que está o futuro do planeta.
Publicado em VEJA de 4 de maio de 2022, edição nº 2787