Com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e um leque de vestibulares se aproximando, o caldeirão das tensões fervilha como nunca nessa que é uma etapa tão decisiva na vida do estudante. Uma ala da turma, porém, pena mais do que as outras: são aqueles jovens que vão tentar uma vaga em medicina, a concorrência mais difícil entre todas as outras no país. Nenhum curso exige uma nota tão alta na entrada — 814, de um total de 1 000, foi a pontuação média no último Enem para conquistar um lugar ao sol em uma instituição pública na área. Na prática, significa que o aluno precisa acertar 150 das 180 questões do exame e ainda cravar pelo menos um 9 na temida redação, uma régua que torna o desafio de ingresso no ensino superior ainda mais superlativo e impõe aos jovens alta disciplina. E, para quem anda às voltas com essa maratona, que tem fim em 20 de novembro, uma notícia: ao que tudo indica a procura irá às alturas, já que a pandemia fez muita gente considerar abraçar a profissão.
Um levantamento nas faculdades de medicina mais procuradas em todo o território nacional ajuda a dimensionar a pressão que recai sobre os jovens. Na ambicionada USP, 125 duelaram por uma vaga em 2021, enquanto na Unicamp a competição era de 325 candidatos para uma única vaga. Dificulta a missão o fato de, em geral, os estudantes entrarem na briga bem preparados. Afinal, eles são obrigados a investir tempo além da conta sobre os livros. “O perfil de quem tenta medicina em universidade pública é de nível acadêmico bem elevado”, reforça Marvio Lima, diretor-geral do cursinho De A a Z. São pessoas que revelam também resistência fora do comum — a maioria tenta três anos seguidos até, enfim, se tornar universitária, como a carioca Luísa Lisboa, 23, que acabou na Universidade Estadual de Alagoas. Como o que queria mesmo era a UFRJ, aventurou-se pela quarta vez no exame — e teve sucesso. “Durante esse período, vivi só para isso”, resume ela, que enfrentou os obstáculos pandêmicos no meio do percurso.
Diante de tamanho grau de dificuldade, uma engrenagem entra em ação para dar estofo aos candidatos para os quais as instituições públicas são a única via — seja pelo valor das mensalidades em universidades particulares (entre 10 000 e 15 000 reais), seja por escolha mesmo. Para os aspirantes a médicos, a carga de estudos é mais puxada — os cursinhos, que costumam dar trinta horas semanais de aulas, dedicam 45 horas a esse grupo, que ainda recebe acompanhamento psicológico. É essencial. Aos 24 anos, Návilla Oliveira se encaminha para sua quarta tentativa e cogita trocar para veterinária caso não passe de novo. “Desenvolvi uma ansiedade. Vejo meus amigos se formando, trabalhando, e eu continuo na mesma”, desabafa. “O estudante de medicina é como um atleta de alta performance, que sente a pressão e precisa aprender a lidar com suas aflições e nervosismos”, enfatiza Heitor Ribeiro, coordenador do Curso Anglo.
Apesar de ser uma carreira exaustiva, que demanda elevadas doses de dedicação, ela atrai tanto os jovens por um misto de propósito — salvar vidas, ajudar os outros — e remuneração. O salário inicial é de 7 500 reais, maior do que na economia (6 000) e no direito (4 500). E há espaço no Brasil para mais médicos, cuja proporção — de 2,4 para cada 1 000 habitantes — ainda está bem aquém da dos países mais desenvolvidos da OCDE, de 3,5. Os especialistas acreditam que, mais adiante, a batalha de quem sonha com um jaleco tende a ficar menos acirrada. “A médio prazo, a oferta deve acompanhar a demanda — isso não apenas no setor privado como no público”, avalia Júlio Braga, coordenador do ensino médico no Conselho Federal de Medicina (CFM). A preocupação maior é que a qualidade seja uma marca de tal expansão.
Enquanto ela não acontece, resta aos futuros médicos mergulharem nos livros dia e noite, antecipando o cotidiano nos hospitais. É uma tremenda prova de resistência. “Vestibulando de medicina precisa resolver até 1 000 questões por semana, ao passo que os outros solucionam de 200 a 400. E eles estudam mais de doze horas por dia”, calcula Breno Leite, fundador do cursinho PB, na região metropolitana do Rio de Janeiro. A experiência mostra que, quanto mais leveza os jovens conferem ao duro desafio, mais tranquilos chegam à reta final. “Abri mão da vida social, mas não deixo de fazer atividades físicas”, ensina Maria Fernanda Branco, 19 anos, que se prepara para o segundo Enem. Ela e os outros já são mestres.
Publicado em VEJA de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808