A segunda metade do século passado foi marcada pelo adensamento populacional das áreas urbanas. Com a expansão econômica do pós-guerra, as grandes cidades se desenvolveram e o mundo viu o desabrochar das metrópoles — e para elas se deslocaram milhões de pessoas em busca de trabalho, moradia e um lugar melhor para viver. O que parecia ser uma fórmula infalível, porém, acabou levando a efeitos colaterais indesejáveis. Poluição, trânsito caótico, violência, superlotação, entre muitos outros problemas, são características reconhecíveis de praticamente todos os grandes centros urbanos. Com o esgotamento do modelo tradicional, os urbanistas começaram a debater alternativas para o que definiram como um dos maiores desafios do futuro: lugares capazes de acomodar milhões de pessoas, mas sem os inconvenientes atuais. Daí surgiu o conceito de smart cities, as cidades inteligentes que aliam qualidade de vida a preservação ambiental e alto uso da tecnologia.
O mais ambicioso projeto de smart city foi anunciado há alguns dias pelo bilionário americano Marc Lore, acionista do Walmart e fundador das empresas de comércio eletrônico Jet.com e Quidsi. Lore deu nome ao seu sonho: Telosa. Sua ideia é que a futura cidade, que será construída em algum deserto americano — nos estados de Nevada ou Texas preferencialmente —, seja a mais sustentável da história. Com 600 quilômetros quadrados, ela produzirá a própria energia renovável e contará com um sistema de tratamento e reaproveitamento de água que a tornará independente de fornecedores externos.
Lore também definiu como ponto inegociável a proibição de veículos movidos a combustíveis fósseis — todos os carros em circulação pela cidade serão elétricos. Outra meta é tecer redes de transporte eficientes a ponto de permitir que os habitantes cheguem ao trabalho após se deslocarem por no máximo quinze minutos. Telosa será totalmente gerenciada por inteligência artificial, que vai controlar os sinais de trânsito, a rede de transporte público, os sistemas de limpeza e as equipes de segurança. Além da metrópole verde e tecnológica, a intenção de Lore é que Telosa seja administrada por colegiados de cidadãos que se revezarão no comando. “Ela será a cidade mais aberta, justa e inclusiva do mundo”, disse o visionário.
O discurso é bonito, mas e o custo para colocar a utopia de pé? Como não poderia deixar de ser, ele não será baixo. Para ser mais preciso, o projeto está orçado em 400 bilhões de dólares — é quase um terço do PIB brasileiro. Lore quer convencer bilionários a participar do projeto. Ele também planeja a criação de um fundo para a captação de recursos, usando as ferramentas da indústria financeira para viabilizar a iniciativa. O empresário, aliás, tem pressa: sua meta é que o primeiro morador se instale em Telosa antes de 2030.
As smart cities estão em alta. No ano passado, a fabricante japonesa de carros Toyota revelou a intenção de criar um município para 2 000 habitantes aos pés do Monte Fuji, chamado Woven City. Na região, seria possível testar carros autônomos, conviver com tecnologias inteligentes e viver lado a lado com robôs que simplificam a vida doméstica. Em 2021, o príncipe saudita Mohammed bin Salman anunciou a construção de um cinturão de comunidades se estendendo por mais de 150 quilômetros, onde serão permitidos apenas carros autônomos. O preço do empreendimento também é alto, cerca de 200 bilhões de dólares. “Houve um aumento nas tentativas de criar cidades tecnológicas nos últimos anos, inclusive na Ásia”, constata Sarah Moser, professora de geografia da Universidade McGill, do Canadá, e especialista no tema. Estima-se que, atualmente, existam cerca de 150 cidades em construção no mundo que buscam atender a um dos desejos mais legítimos do ser humano: um lugar acolhedor para passar a maior parte dos seus dias.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757