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Startups brasileiras entram na guerra global pelo mercado de IA

A disputa feroz no ramo da tecnologia é um terreno incerto, mas há promessa de prêmios altíssimos aos vencedores

Por Marcos Coronato
28 jul 2024, 08h00
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  • O empreendedor Igor Marinelli construiu uma via expressa para o sucesso — autodidata em desenvolvimento de software durante a adolescência, empregado no Vale do Silício aos 20 anos, empreendedor aos 21. Aos 25, viu sua empresa de tecnologia, a Tractian, ser avaliada na casa do bilhão de reais. A via expressa de Marinelli é, ao mesmo tempo, um caminho difícil, cheio de curvas. Ele se tornou uma autoridade em aplicar, a um segmento de mercado bilionário — a manutenção de máquinas industriais —, todo o poder da inteligência artificial (IA). A aposta de Marinelli e seus sócios deu certo. A Tractian, em seu quinto ano de vida, tem escritórios em São Paulo, na Cidade do México e em Atlanta (onde Igor passa a maior parte do tempo), nos Estados Unidos, e conta com cerca de 500 clientes, incluindo multinacionais brasileiras e estrangeiras, como Corteva, Dexco, Embraer e Ingredion. Trata-se de um caso exemplar do poder da inteligência artificial para expandir os negócios, que vem sendo testado por empreendedores brasileiros em vários segmentos.

    Esse grupo, por diferentes trajetórias, usa IA para construir negócios de alto valor — ou, ao menos, com altas perspectivas (todas as empresas nesta reportagem receberam investimentos desde janeiro de 2023). E fazem isso mesmo lidando com um cenário bastante turvo. Quem empreende em tecnologia da informação sempre teve de enfrentar alto grau de incerteza, a ameaça constante do surgimento de concorrentes mais inovadores e os ciclos de euforia e depressão dos investidores (2023 foi ano de demissões em massa no setor de tecnologia da informação e a tendência persiste em 2024).

    Para empreendedores brasileiros que empenham conhecimento, tempo, energia e dinheiro para criar sistemas e serviços de IA, a incerteza é ainda maior, por vários fatores. Governos poderosos, Estados Unidos e China à frente, consideram a tecnologia estratégica e podem favorecer empresas de acordo com seus interesses; gigantes de software, como Microsoft e SAP, desenvolvem seus próprios serviços e podem esmagar competidores menores; seguidas ondas de euforia com novos produtos tornam difícil distinguir o que é sólido do que é miragem.

    Por isso, embora as perspectivas para os avanços tecnológicos de inteligência artificial continuem superlativas, as previsões para os negócios no segmento, no futuro próximo, tornaram-se mais comedidas. “Podemos dizer que em 2021 e 2022 houve algumas aberrações, com euforia demais e negócios que nem deveriam ter ocorrido”, afirma Geraldo Melzer, sócio fundador da ABSeed Ventures. “O ano passado já foi de ajuste, menos aquecido, e o momento agora é mais saudável, de pé no chão.” A ABSeed é especializada em negócios que prestam serviços tecnológicos para empresas e tem investimento em ao menos três startups fortemente apoiadas em inteligência artificial.

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    Castello (no chão), CEO da Fhinck, e seus sócios, Zarzour, Hirota e Murta: “O ChatGPT me fez perder o sono”
    Castello (no chão), CEO da Fhinck, e seus sócios, Zarzour, Hirota e Murta: “O ChatGPT me fez perder o sono” (Paulo Liebert/.)

    O ajuste do mercado foi detectado em pesquisas. O hub de inovação Distrito estimou os investimentos em startups de IA na América Latina em 409 milhões de dólares em 2022 (média de 34 milhões por mês) e em apenas 53 milhões de dólares no período de janeiro a outubro de 2023 (média de 5,3 milhões por mês). O Distrito ressalta que sua metodologia não se propõe a fazer comparações diretas entre anos diferentes. Ainda assim, a queda no volume total de investimentos chama atenção.

    arte IA

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    O alerta não detém os empreendedores. O Distrito também mapeou, num estudo publicado em outubro, 355 startups brasileiras baseadas em IA, 59 delas com faturamento superior a 10 milhões de reais. Chegar a esse grupo seleto é difícil. “Parece tudo muito bacana, mas vai treinar um modelo de IA para ver o tamanho da encrenca”, diz Paulo Castello, fundador da Fhinck. A empresa desenvolve software para analisar a atividade de qualquer pessoa que trabalhe na frente de um computador — produtividade, procedimentos, hábitos, indicadores de fadiga e estresse. Quando Castello fala em “treinar um modelo”, refere-se a uma etapa da preparação de uma IA. A técnica de aprendizado de máquina (ou ML, na sigla em inglês) exige que o software seja “treinado” ou “ensinado”, até que consiga realizar as tarefas esperadas. Castello e sua sócia Sarah Jane Hirota têm hoje cerca de quarenta clientes em quinze países e sentem os solavancos típicos de um setor muito dinâmico. “Perdi o sono quando o ChatGPT apareceu, em 2022. Pensei: será que vai começar a surgir um monte de concorrente?”, diz ele.

    Castello se refere ao exemplo mais famoso da IA generativa: modelos que conseguem atender a perguntas e pedidos formulados em linguagem comum, sem exigir do usuário conhecimentos de programação, e produzem textos e imagens sob medida, com um balanço entre qualidade e velocidade que parece insuperável. Esse ramo de inteligência artificial não se presta a executar todo tipo de tarefa, mas pode elevar a produtividade de qualquer negócio. Na Fhinck, depois de passado o susto inicial de Paulo Castello, a divisão de trabalhos ficou assim: um modelo de IA (não generativa) analisa os milhões de dados gerados pelo comportamento de cada funcionário nas empresas clientes e produz relatórios a respeito; a IA generativa entra em cena como assistente dos gestores, para ajudá-los a encontrar nesses relatórios as informações mais importantes e decidir como usá-las.

    Marinelli, CEO da Tractian: com IA, ganho de tempo e dinheiro
    Marinelli, CEO da Tractian: com IA, ganho de tempo e dinheiro (./Divulgação)
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    O advento da IA generativa sacudiu a rotina também na Digibee. A empresa oferece uma plataforma de programação para desenvolvedores de software que trabalham nas empresas clientes. O sistema baseado em aprendizado de máquina, não generativo, era fundamental para monitorar e fazer previsões sobre as demandas dos clientes. Quando a IA generativa chegou ao mercado, Peter Kreslins, cofundador e diretor de tecnologia, coordenou os trabalhos para testá-la e integrá-la ao negócio. Atualmente, a generativa é usada como assistente pelos desenvolvedores da Digibee na criação de software.

    Kreslins, CTO da Digibee: força-tarefa testou IA antes de incorporá-la ao negócio
    Kreslins, CTO da Digibee: força-tarefa testou IA antes de incorporá-la ao negócio (./Divulgação)

    As startups brasileiras que parecem bem-sucedidas no uso de IA até o momento têm algumas características em comum: propõem-se a disputar o mercado internacional e prestar serviço de alta qualidade, sem deslumbramento com tecnologias específicas. O Brasil nunca se consolidou como referência em inovação, mas empreendimentos brasileiros isolados já trilharam o sucesso, em ondas tecnológicas anteriores — foram os casos das desenvolvedoras de software como Linx, Semantix e Totvs, e de fintechs como Neon, Nubank e Stone. Agora, é a vez da inteligência artificial. O monte de concorrentes que Castello, da Fhinck, chegou a temer a ponto de perder o sono não veio. E ele rapidamente viu como usar a tecnologia em seu favor. Deve ser assim, com uma dose de receio saudável e muitas doses de iniciativa, a receita para startups brasileiras conquistarem seu espaço nesse mercado disputado.

    Publicado em VEJA, julho de 2024, edição VEJA Negócios nº 4

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