Em uma fazenda nos arredores de Olímpia, município no norte do estado de São Paulo, um robô é testado desde novembro de 2023 no cultivo de cana-de-açúcar. Alimentado por energia solar, o equipamento se movimenta de forma autônoma entre as linhas do canavial, seguindo as informações de posicionamento via satélite. A máquina carrega uma haste pulverizadora, na qual estão instaladas câmeras que capturam imagens do solo em alta resolução. Os algoritmos no computador de bordo interpretam as cenas e identificam eventuais plantas que não sejam cana-de-açúcar. Quando uma delas é reconhecida, o computador envia um comando para a haste, que aplica o herbicida sobre a praga. O processo é instantâneo.
O robô agrícola, usado também em plantações de soja, é um dos exemplos mais simbólicos de como tecnologias de inteligência artificial (IA) e automação têm alterado para melhor o trabalho no campo. O avanço faz parte de um movimento que especialistas apelidaram de “agricultura 5.0”. É a evolução da digitalização no agronegócio que ocorreu nos últimos anos, quando muitos produtores passaram a incorporar sensores, drones e plataformas digitais de análise de dados. As tecnologias mais novas agora permitem utilizar as informações para fazer previsões, identificar padrões que antes não eram evidentes e otimizar o uso de recursos.
“Na agricultura 5.0, os dados disponíveis são transformados naquilo que os americanos chamam de actionable insights, que é material para a tomada de decisão na prática”, diz Francisco Jardim, sócio fundador do SP Ventures, um fundo de capital de risco que investe em empresas de tecnologia da cadeia do agronegócio.
No caso do robô usado na cana-de-açúcar, a inteligência artificial possibilita fazer uma pulverização localizada, o que substitui a aplicação de herbicidas em larga escala por grandes máquinas ou a pulverização por trabalhadores humanos. Além da economia, há o benefício ecológico, por causa da menor dispersão de defensivos no meio ambiente. Os experimentos até aqui indicam uma economia de 50% dos insumos usados na chamada fase “pós-emergente” (depois que as ervas daninhas já brotaram), de acordo com a Tereos, grupo agroindustrial francês que tem testado a tecnologia nos canaviais paulistas. O grupo é um dos maiores produtores de açúcar e etanol no Brasil.
O robô se soma a outras tecnologias nas fazendas de cana. A Tereos utiliza também sistemas de inteligência artificial que analisam imagens capturadas por satélite ou por câmeras especiais instaladas em drones. Por meio das imagens, os algoritmos verificam a saúde das plantas e identificam locais com falhas ou infestações de ervas daninhas.
Outra aposta é uma câmera com tecnologia israelense, que captura imagens de alta resolução a partir de aviões de pequeno porte que fazem sobrevoos nas plantações. Ela permite apontar a espécie exata da planta que está causando a infestação. “Quando não se sabe qual erva daninha está afetando o talhão, você acaba fazendo um tratamento genérico, que é menos eficiente. Essa tecnologia nos abre a oportunidade de dar o remédio certo para a disfunção que está presente”, diz Carlos Simões, diretor agrícola e de planejamento da Tereos.
Ganhos de produtividade
A agricultura brasileira é um dos raros casos de sucesso econômico no Brasil. Entre as safras de 1976/1977 e 2022/2023, a produção de grãos por aqui passou de 47 milhões para 320 milhões de toneladas — praticamente foi multiplicada por sete. No mesmo intervalo, a área de plantio de grãos dobrou, o que indica que a expansão ocorreu muito mais por ganhos de produtividade do que por meio da abertura de novas fazendas.
O ganho de produtividade foi impulsionado pelo uso de novas variedades genéticas mais resistentes e adaptadas ao clima brasileiro, bem como pelo avanço no uso de fertilizantes, de defensivos e da mecanização, o que permitiu uma agricultura de precisão. A chegada dos sistemas de inteligência artificial ao campo agora é vista por especialistas como um dos próximos passos nessa evolução.
As máquinas agrícolas mais avançadas são equipadas com GPS de alta precisão, modem de conexão à internet, câmeras de alta resolução e sistemas digitais de machine learning. Colheitadeiras são capazes de analisar por meio de visão computacional a qualidade dos grãos que estão sendo colhidos e ajustar automaticamente a velocidade e a rotação para garantir os parâmetros definidos pelo operador da máquina.
Já os equipamentos que fazem o plantio capturam os dados de quantas sementes foram plantadas em cada local e a quantidade de insumo aplicada, e também identificam, por meio do GPS, quais são os locais já plantados, para evitar a duplicidade. “Além de reduzir o consumo de insumos, isso propicia aumento da produtividade, porque consigo garantir que aquele insumo foi distribuído de modo uniforme”, diz Estela Dias, gerente de tecnologias de precisão da John Deere Brasil. A fabricante de máquinas agrícolas começa a comercializar neste ano uma pulverizadora com um sistema de IA que também identifica ervas daninhas e aplica o herbicida diretamente sobre a praga, um trabalho semelhante ao do robô testado nos canaviais, mas feito em maior escala.
As soluções de inteligência artificial também têm sido usadas na pecuária. É o caso de um equipamento voltado para a criação de suínos que permite fazer uma análise da saúde dos animais e identificar potenciais porcos doentes com antecedência. Os aparelhos são instalados no teto dos galpões e captam os sons dos animais ao redor, como ruídos vocais e tosses, por meio de microfones. Quando o sistema identifica um sinal sonoro de um animal doente, o responsável é alertado e pode tomar as medidas para evitar a contaminação de outros suínos, como isolar os porcos da área afetada, aplicar antibióticos e desinfetar o galpão.
O sistema passou a ser utilizado no Brasil em 2022 e hoje está instalado em granjas de seis grandes produtores de suínos no país, de acordo com a Boehringer Ingelheim, empresa alemã que desenvolveu o produto. Segundo Filipe Fernando, gerente da área de aves e suínos da Boehringer Ingelheim, um dos experimentos realizados indicou um ganho de 1 quilo por animal nas granjas que utilizaram o equipamento. “Em uma granja tradicional, quando um animal fica doente, é preciso tratar o galpão inteiro. Com o equipamento, em grande parte dos casos, você consegue fazer o tratamento só na área afetada”, afirma Fernando.
Investimentos e startups
A perspectiva de ganhar mercado desenvolvendo novas soluções de inteligência artificial para o agronegócio tem atraído empreendedores e investidores. Desde 2017, startups que atuam no ramo na América Latina receberam 649 milhões de dólares em aportes de fundos de capital de risco, de acordo com relatório da consultoria Distrito. Cerca de 80% dos investimentos foram destinados a startups do Brasil.
Ao todo, o país tinha no ano passado 1 953 agtechs, como são chamadas as startups do agronegócio. O número indica um crescimento de 15% sobre o ano anterior. Os dados são de um levantamento realizado pela Embrapa, em conjunto com o fundo SP Ventures e a consultoria Homo Ludens.
Uma das empresas é a Agrosmart, da empreendedora Mariana Vasconcelos. A startup, fundada em 2014, cresceu oferecendo um sistema para fazer o monitoramento climático por meio de sensores instalados nas fazendas. Hoje são cerca de 8 000 equipamentos e 19 000 produtores rurais que utilizam a versão mais completa da ferramenta da empresa.
Com a captura dos dados, a startup começou a desenvolver modelos por meio de machine learning — o uso de algoritmos para os computadores aprenderem e tomarem decisões com base em dados — para fazer o manejo da irrigação, a previsão do tempo e indicar o risco de desenvolvimento de doenças com base nas informações do clima. Mais recentemente, a Agrosmart passou a oferecer ferramentas de inteligência de mercado para a agroindústria, usando dados para prever eventos climáticos adversos e possíveis quebras de safra, entre outras informações relevantes para o produtor.
Agora a empresa trabalha no desenvolvimento de uma ferramenta de IA generativa, o mesmo modelo por trás do ChatGPT, para fornecer respostas a perguntas simples dos produtores rurais. “Os modelos de inteligência artificial têm mais capacidade para processar um volume de dados e com um nível de complexidade muito maior. Com isso, conseguimos descobrir mais padrões, o que se traduz em previsões mais assertivas e em aumento de produtividade”, diz Mariana.
Outras agtechs apostam em serviços voltados para fora da fazenda. A empresa A de Agro, dos empreendedores Rafael Coelho e Eduardo Souza, desenvolveu um sistema de inteligência artificial para identificar padrões por meio de imagens de satélite e fazer análises de créditos de produtores. Segundo os fundadores, o sistema é capaz de identificar a área agricultável, as áreas de floresta, a data do plantio e fazer projeções sobre a produtividade. “Em minutos conseguimos encontrar os talhões de uma fazenda, identificar a cultura, começar o monitoramento da área, dizer se houve plantio ou se a produção pode quebrar”, afirma Souza.
Já a startup Traive, fundada por Aline Oliveira e Fabricio Pezente, desenvolveu um modelo de inteligência artificial que combina a análise de dados públicos e privados para oferecer um score (nota) de crédito sobre os produtores, o que ajuda as companhias do setor a tomar a decisão de oferecer mais prazo ou não para que um cliente faça o pagamento. O sistema da startup gera seis scores, que medem a probabilidade de atraso do pagamento e de endividamento, a produtividade e se a fazenda cumpre as regras ambientais e de sustentabilidade. “Em média, para cada score, são analisados aproximadamente 4 500 pontos de dados”, diz Aline Oliveira. Em fevereiro, a startup recebeu uma rodada de investimento de cerca de 100 milhões de reais, que incluiu um aporte do Banco do Brasil, instituição que responde por 60% do crédito rural no país.
O que se vê é que, fora da porteira, a inteligência artificial abre novas oportunidades de negócio para empresas do setor, e as primeiras experiências estão ainda no começo. Já para os produtores rurais, a tecnologia chega para complementar as ferramentas de manejo em busca de um trabalho mais eficiente. A produtividade no campo, espera-se, tende a sair ganhando mais uma vez.
Publicado em VEJA, abril de 2024, edição VEJA Negócios nº 1