Ao mesmo tempo que ainda contabilizam os enormes prejuízos pela paralisação forçada, comerciantes de países que ensaiam o retorno à normalidade experimentam a sensação de um salto no escuro diante do novo mundo pós-pandemia. As pessoas vão voltar a frequentar restaurantes? Terão disposição e dinheiro no bolso para entrar em uma loja? Depois do trauma de milhares de mortes e da incerteza que ainda paira a respeito da disseminação da doença, ninguém sabe a resposta exata para essas questões. Na fase de primeiras experiências que tateiam a retomada das atividades, ao menos um setor (de forma surpreendente) já tem motivos para se declarar menos propenso à contaminação: o de negócios de luxo. O laboratório que trouxe notícias otimistas é a China, país que é responsável por um terço do consumo global dessa indústria. Ao voltarem recentemente às compras, os ricaços da potência asiática mostraram um grande apetite.
As informações sobre a movimentação chamam atenção. Segundo o WWD, publicação que é referência entre profissionais do mercado de artigos sofisticados, uma única butique da centenária grife francesa Hermès, em Guangzhou, uma das maiores cidades da China, teria faturado 2,7 milhões de dólares apenas em sua reabertura, no último dia 11. O evento reuniu vips e endinheirados da abastada província de Guangdong, atraídos por modelos raros da bolsa Birkin, peça que sintetiza como poucas o conceito de exclusividade. Uma recuperação rápida do consumo de lá seria a tábua de salvação para a indústria do luxo, que ainda enfrentará dias difíceis sob o efeito da pandemia no Ocidente — em especial nos países que são sinônimos do setor, como a Itália e a França. Os dois grupos superpoderosos do segmento, o LVMH (leia-se Louis Vuitton, Dior e Givenchy, entre outras marcas) e o Kering (que tem a Gucci como carro-chefe), anunciaram quedas de 15% no primeiro trimestre do ano. Nas primeiras semanas de abril, porém, o LVMH registrou uma boa reação nas lojas da China, algumas delas com aumento de 50% nas vendas em relação a 2019. “Temos observado taxas de crescimento substanciais, que mostram o apetite dos clientes para voltar às lojas depois dos meses de confinamento”, disse Jean-Jacques Guiony, chefe da área financeira do conglomerado, em recente apresentação de resultados.
Seguindo procedimentos rigorosos, como ter a temperatura medida por dispositivos que dispensam o contato físico na entrada de estabelecimentos comerciais, os chineses estão voltando a frequentar shoppings, lojas e restaurantes das grandes cidades. “A reabertura tem sido gradual, um processo de várias semanas. Quando o comércio retomou as operações, o movimento foi baixo. Mas, agora, a maioria dos consumidores está confiante nas perspectivas econômicas. As vendas on-line, por exemplo, já estão ultrapassando os níveis de 2019”, afirmou a VEJA Daniel Zipser, líder da área de varejo da consultoria McKinsey na potência asiática. Em uma pesquisa feita pela empresa em abril, 52% dos chineses disseram esperar que a economia se recupere em dois ou três meses.
A despeito dessas boas notícias, a nova ordem mundial criou um ponto sensível que terá indiscutível impacto sobre o consumo de luxo nos próximos meses: as viagens. Diversas pesquisas revelam que os chineses fazem apenas um terço das compras desses artigos dentro do próprio país. Deixam o resto para as visitas ao exterior, em especial Europa e outros destinos da Ásia — não só para aproveitar os preços mais baixos, mas pela experiência autêntica de escolher uma peça no lugar que representa as origens da grife. “Devemos olhar agora as vendas globais das marcas de luxo por nacionalidade. Sem as viagens, para haver de fato um crescimento, precisamos ver um aumento de duas ou três vezes nas compras dos chineses em seu país para compensar a queda no movimento turístico”, diz Luca Solca, analista da consultoria Bernstein Research. Para ele, há ainda uma questão mais básica a ser respondida: as pessoas continuarão com uma vida social tão ativa quanto antes da pandemia ou terão receio de se expor? “Se os consumidores não saírem de casa com a mesma frequência, as ocasiões para o uso de roupas e acessórios serão mais restritas”, lembra o especialista. O alerta faz sentido e preocupa os principais players da indústria do luxo no mundo. Mas, na China, o medo ficou para trás e é hora da festa da demanda reprimida.
Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685