Uma nova revolução está em curso e promete transformar a indústria de alimentos e a agropecuária, talvez em menos de duas décadas. Sabemos que as transformações digitais em série tiraram os discos e CDs da estante e obrigaram a indústria fonográfica a reinventar-se. A indústria automotiva debruça-se sobre os efeitos da sociedade uberizada e redesenha seus próximos passos com carros elétricos, autônomos e drones automotivos pelo ar. A febre de aplicativos de bikes e patinetes aponta para a chegada de uma nova geração decidida a desembarcar do sonho de ter um carro e do desejo de dirigir. Os smartphones não só transformaram o telefone fixo quase em enfeite, mas já obrigam até potentes emissoras de televisão a repensar suas telinhas e modelos de negócio, isso para citar apenas um aspecto. Testemunhamos uma série de mudanças de crenças, valores e certezas. Qual será a próxima onda disruptiva? Possivelmente ela acontecerá pela boca. Ou em torno de todo o modelo que existe hoje para alimentar as pessoas. Não comerás como antes. E não produzirás alimento da mesma forma que se faz hoje. Em questão de décadas, o que soa agora como um mandamento bíblico poderá fazer todo o sentido.
É possível que a produção de tudo o que se come atualmente seja muito diferente em um futuro não muito distante. O setor econômico que gira ao redor da circunferência de um prato de arroz, feijão, alface, batata, tomate e carne, entre uma garfada geracional e outra, sofrerá impactos estruturais. Chegou a hora de discutir o que a comida disruptiva — e toda a sua fascinante tecnologia — fará com o modus operandi da indústria e da agropecuária e com a próxima etapa do agronegócio, quando a produção de bifes de laboratório ganhar escala e se tornar mais acessível, por exemplo. Será que, nas próximas décadas, a carne suculenta saboreada no almoço ainda vai depender da criação de gado para o abate, como sempre funcionou no modelo tradicional da pecuária?
Isso pode parecer ficção científica ou um delírio utópico, entretanto já existe. Mais cedo do que imaginamos, a produção industrial de carnes não dependerá da criação de gado de corte nem de matadouros. Produzir carne cultivada em laboratório a partir da multiplicação de células em vez de criar animais inteiros para abatê-los já é uma realidade e um tema presente no debate mundial. O primeiro hambúrguer cultivado surgiu em 2013. Seu custo era de cerca de 300 000 dólares. Hoje o preço já é 11 dólares. Com pesquisas e produção em escala industrial, num futuro que talvez não demore tanto a chegar, a carne cultivada em laboratório poderá vir a ser mais barata que a atual. Além disso, poluiria muito menos do que a produzida nos moldes tradicionais e seria sustentável. E ainda evitaria submeter animais ao sacrifício e à morte.
A discussão tem ganhado espaço. Entre suas 21 Lições para o Século 21 e os grandes temas da atualidade, o historiador israelense Yuval Noah Harari, autor dos best-sellers mundiais Sapiens — Uma Breve História da Humanidade e Homo Deus, já fez a provocação: “Por que gastar tanto dinheiro criando uma vaca inteira quando você pode fazer crescer um bife?”. Há grande expectativa em torno de novas tecnologias que sustentem o crescimento econômico sem destruir o ecossistema. Para produzir 1 quilo de carne, é necessário gastar pelo menos 15 000 litros de água doce. Produzir carne gera muito mais poluição e emissão de gases de efeito estufa do que a quantidade equivalente em vegetais.
Ph.D. pela Universidade de Oxford, Harari põe a pecuária em xeque. Sustenta ainda que, julgada pelo grande sofrimento que produz, a pecuária moderna é, provavelmente, um dos piores crimes da história. Ele frisa que bilhões de animais são tratados como máquinas pela indústria da carne, laticínios e ovos, e não como criaturas vivas capazes de sentir dor, angústia e ansiedade. É fato que ignoramos que a indústria de laticínios é baseada no rompimento de laços afetivos entre mães e filhotes. Para produzir leite, uma vaca precisa dar à luz um bezerro, que é abatido antes da ordenha. O processo provoca dor e agonia a milhões de animais. Independentemente das polêmicas e sem partir para radicalismos, a verdade é que o debate está em pauta e segue forte nas discussões mundiais sobre consumo consciente.
O agronegócio é um motor importante do Brasil e precisa preparar-se para o futuro. O mercado robotiza-se, a agricultura 4.0 e a tecnologia avançam na criação de insumos que agridam menos o ecossistema, em gestão e nas frentes digitais para garantir volume de produção. Contudo, como lidar com a chegada da comida do futuro? É questão de tempo, porém a mudança do sistema em vigor faz parte de um processo irreversível. Além da carne vegetal e da carne desenvolvida a partir de células-tronco, estamos diante do leite sem vaca, do porco transgênico, do trigo sem glúten, do tomate geneticamente modificado, da batata frita saudável, da soja que sangra a partir de inovações químicas, do atum feito de soja não transgênica e o que mais chegar. O leite vegetal, por exemplo, só deve entrar no mercado em alguns anos. No entanto, há empresas e pesquisas dedicadas a usar bactérias e leveduras geneticamente modificadas para fermentar o açúcar e criar um líquido com proteínas que dão ao leite suas características. Outras startups apostam em inteligência artificial para acertar a proporção para reproduzir o leite com ingredientes de origem vegetal.
Os mercados e o volume de produção ainda são, obviamente, incomparáveis. No caso da carne de laboratório, por exemplo, já foi noticiado: a expectativa é que as vendas cheguem a 20 milhões de dólares até 2027. Para o mercado mundial de carnes, trata-se de um número ínfimo. Mas a tendência é de crescimento. Deve-se lembrar que indústrias diversas que acreditavam na força de seus pilares de sustentação e não conseguiram se reinventar foram surpreendidas pela onda disruptiva. Nossa indústria está atenta e pronta para a nova era alimentar? Saberemos quando chegarmos lá. Que venha o admirável mundo novo da comida impossível.
* Lucilia Diniz é empresária, escritora e youtuber especializada nos temas alimentação saudável, saúde e bem-estar, fundadora da marca de alimentos Goodlight e ex-acionista do Grupo Pão de Açúcar, hoje sob gestão do Grupo Casino
Publicado em VEJA de 12 de junho de 2019, edição nº 2638