Diz a sabedoria parlamentar que todos os políticos e eleitores são favoráveis a uma reforma tributária — o diabo, que sempre está nos detalhes, é chegar a um acordo sobre qual reforma exatamente. Prova disso é que todos os presidentes desde Fernando Collor de Mello (1990-1992) falaram em promover mudanças na complicadíssima estrutura brasileira de impostos, mas ninguém conseguiu mexer nesse vespeiro de interesses antagônicos. Na última semana, o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, começou a dar detalhes da proposta do atual governo para o assunto — que entra na briga enfrentando dois projetos já adiantados no Congresso, um na Câmara e o outro no Senado. A mudança que mais chama atenção na reforma de Cintra diz respeito a um tributo que dói no bolso de todos os contribuintes: o imposto de renda. Sob a bênção do ministro Paulo Guedes, o secretário da Receita pretende diminuir a alíquota máxima — hoje de 27,5% para quem tem renda maior do que 4 664 reais — para até 25%. E, a fim de cumprir uma promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro, aumentar a faixa de isenção dos atuais dois salários mínimos para quem ganha até cinco, ou, em valores de agora, 4 990 reais.
Não se trata, naturalmente, de um mero capricho do governo. A complexidade do sistema tributário afasta investimentos, burocratiza o empreendedorismo e dificulta a vida do trabalhador. Há, porém, pelo menos dois entraves para que se promovam as alterações: a legislação e o apreço pelas contas públicas. A Lei de Responsabilidade Fiscal obriga que qualquer redução de impostos traga como contrapartida outro mecanismo capaz de gerar receitas. E aí mora o problema.
Para que a matemática do novo imposto de renda funcionasse, a ideia era acabar com as deduções de gastos com saúde e educação previstas no IR — o que hoje representaria uma renúncia de arrecadação de quase 46 bilhões de reais por ano. Além de retirar aqueles benefícios atualmente disponíveis para o contribuinte, Cintra anunciou estudos para a criação de outro imposto, que incidiria sobre pagamentos — similar a uma velha conhecida dos brasileiros, a famigerada CPMF, extinta em 2007 depois de dez anos de vigência diante de forte pressão popular. “Já falei que não existe CPMF”, refutou Bolsonaro sobre a possibilidade da adoção do tal tributo. Ao que parece, o presidente não conhece bem seu secretário da Receita. Entusiasta de primeira hora das teorias do economista americano Edgar Feige, professor da Universidade de Wisconsin (EUA) e pioneiro na defesa do imposto único, Cintra se apega a essa proposta em publicações e artigos desde os anos 1980, pregando a substituição de toda a miríade de siglas que compõem o sistema tributário brasileiro, incluindo IPTU, IPVA e o próprio IR, por uma só taxa. A mágica estaria em cobrar um único tributo de todas as transações financeiras, precisamente como fazia a CPMF. No Congresso Nacional, parlamentares veem com maus olhos as duas propostas de compensação da redução da carga tributária. O entendimento é que o fim das deduções de gastos com saúde e educação e a criação de outro imposto são medidas impopulares — e de consequências imprevisíveis. Críticos do projeto apontam, por exemplo, para o risco de que as pessoas passem a usar mais dinheiro vivo, e empresas percam produtividade ao realizar internamente tarefas que poderiam terceirizar, só para fugir da taxa bancária. O próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), rechaçou publicamente a possibilidade da criação do imposto.
Diante dos senões, Cintra recuou um pouco. Ainda que se mantenha firme na proposta do novo tributo, flexibilizou a ideia de acabar com as deduções de serviços médicos e educacionais no IR. Seu plano agora é limitá-las a um teto, a ser definido. Sua justificativa é de que apenas os mais ricos seriam beneficiados pela regra, contudo o argumento não encontra eco entre seus pares. “A proposta aumenta a tributação sobre quem gasta com saúde, que são principalmente os idosos, e aqueles que gastam com mensalidades de escola, que fazem parte da classe média”, defende Everardo Maciel, que foi secretário da Receita no governo Fernando Henrique (1995-2002).
Enquanto Cintra mede até onde consegue ir com a limitação das deduções, o governo continua tentando convencer alguém de que sua contribuição sobre pagamentos (CP) não é um simulacro da temerosa contribuição provisória sobre movimentação financeira. Não está funcionando. Guedes e sua turma terão de pensar em uma alternativa para que o próprio Planalto não caia na, por assim dizer, “malha fina” — e a solução pode estar no próprio Congresso. O projeto de alterações tributárias mais aceito em Brasília, redigido pelo economista Bernard Appy e apresentado pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP), defende a unificação de três impostos federais (Cofins, IPI e PIS) com a inserção de um estadual e outro municipal, o ICMS e o ISS, respectivamente — a proposta do governo mira apenas impostos relativos à União. “Uma reforma que ignore estados e municípios não resolve o problema”, acredita o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles. Apesar da resistência dos congressistas em relação ao projeto governista, membros da comissão que analisou a proposta de Appy afirmam que podem aproveitar algumas ideias de Cintra, como a da desoneração da folha de pagamentos das empresas. O Planalto apresentará sua proposta oficialmente com o pacote de medidas que Paulo Guedes prometeu anunciar em breve.
Se a carga tributária no Brasil é pesada, a mordida do IR não é das maiores do mundo (confira no quadro abaixo). O que incomoda o cidadão brasileiro é a falta de serviços públicos que justifiquem seu pagamento, e a extinção das deduções de gastos com saúde e educação — implementadas respectivamente em 1948 e 1964 — só piora o quadro. A Suécia, que tem a mais alta alíquota de tributo sobre a renda do planeta, ocupa a quarta colocação entre os países com o melhor sistema público de saúde do globo, enquanto o Brasil amarga a 95ª posição, entre 195 nações. O Japão pode se gabar de ter a melhor performance estudantil de acordo com o ranking da OCDE — os estudantes brasileiros estão em penúltimo lugar. Até conseguir melhorar significativamente os hospitais e as escolas da rede pública, pode ser melhor para o governo não mexer nesse vespeiro.
Publicado em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648