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Ataque aos privilégios

Bolsonaro faz uma grande aposta com a ambiciosa proposta de mudar as regras da aposentadoria, reduzindo a desigualdade de tratamento entre ricos e pobres

Por Marcelo Sakate Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h48 - Publicado em 22 fev 2019, 07h00
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    (Arte/VEJA)

    O governo de Jair Bolsonaro, para todos os efeitos econômicos e políticos, começou na quarta-feira 20 de fevereiro. Nesse dia, o presidente e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, entregaram ao Congresso uma proposta promissora de reforma da Previdência. O documento é ambicioso o bastante, dado o tamanho do problema, e abrangente a ponto de não ser acusado de corporativista. “Ricos e pobres, servidores públicos, políticos ou trabalhadores privados, todos seguirão as mesmas regras de idade e tempo de contribuição”, disse o presidente em pronunciamento à nação em rede nacional de rádio e TV na quarta à noite.

    A reforma da Previdência é a mãe de todas as reformas do Estado brasileiro. O pagamento de aposentadorias e pensões se tornou o principal gasto da União, dos estados e municípios, consumindo mais da metade das receitas públicas. Diante de déficits cada vez maiores, o governo já não consegue cumprir com suas obrigações, como assegurar à população o direito à segurança e à saúde. As perspectivas sombrias para o setor público, por sua vez, contaminam o ânimo e a confiança de empresários, que congelam investimentos e contratações. A proposta do governo é uma tentativa importantíssima de tirar o país desse buraco, atacando privilégios como a aposentadoria precoce. Entre os servidores públicos, a exceção, por ora, são os militares. Mas, como a coluna Radar antecipou, o governo fará mudanças nos benefícios da categoria (veja o quadro no final da reportagem).

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    (Arte/VEJA)

    Elaborado desde a transição de governo, o texto apresentado institui algumas mudanças fundamentais para equilibrar o caixa. Um dos exemplos é a idade mínima para a aposentadoria de todos os trabalhadores, que será de 65 anos para homens e 62 anos para mulheres a partir de 2031, quando acabar o período de transição de doze anos. “É uma medida justa, que torna o sistema mais igual”, diz o economista Hélio Zylberstajn, da Fipe. A proposta será apreciada nos próximos meses na Câmara dos Deputados; se aprovada nessa Casa, passará ao Senado. Caso não sofra alterações — o que é altamente improvável —, vai gerar uma economia de 1,07 trilhão de reais em dez anos, segundo cálculos da equipe econômica (com a inclusão posterior dos militares, o impacto chega a 1,16 trilhão de reais). Esse valor equivale praticamente ao que o governo despendeu em 2018 com a seguridade social, a área que contempla a Previdência, despesas assistenciais e de amparo ao trabalhador: 994 bilhões de reais. “A proposta pode resolver o problema de tal forma que não precisaríamos ficar falando de reformar a Previdência a cada governo, o que consome uma grande quantidade de tempo e energia do debate político, em um país com tanta coisa para ser resolvida”, diz o economista Pedro Nery, coautor do livro Reforma da Previdência — Por que o Brasil Não Pode Esperar?. Segundo ele, o impacto fiscal seria suficiente para dirimir incertezas quanto ao indesejável crescimento da carga tributária e à trajetória da dívida pública, o que favorece a recuperação do investimento e do emprego.

    A proposta tem outros méritos: busca unificar as regras dos diferentes regimes hoje existentes e impõe contribuições maiores sobre a renda atual de quem ganha mais — um aspecto que torna a reforma mais justa ao distribuir sacrifícios de modo equânime. A ideia acaba com distorções que fazem com que um professor da rede pública que ganha 1 200 reais por mês pague a mesma alíquota do INSS (no caso, de 11% sobre o rendimento) que um juiz cujo salário supera 30 000 reais. “O servidor antigo com regras privilegiadas vai ter de contribuir por mais tempo e, se ganha mais, vai ter de pagar um valor maior também”, diz Nery. A seguir, VEJA analisa os principais pontos da proposta de reforma da Previdência.

    Ministério da Economia
    OS PAIS DA REFORMA – Técnicos da equipe econômica explicam os detalhes da proposta à imprensa: regras de transição mais duras do que as sugeridas por Temer (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
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    Tempo de contribuição

    Pelas regras atuais, um trabalhador do setor privado consegue se aposentar com qualquer idade, desde que tenha contribuído para a Previdência por um período mínimo (trinta anos para mulheres, 35 anos para homens). Se o recolhimento tiver começado aos 20 anos de idade, por exemplo, a mulher poderá se aposentar com 50 anos, e o homem, com 55 anos (em geral, são os trabalhadores mais escolarizados e de maior renda, que têm mais chances de contribuir por trinta anos ininterruptos). Isso não será mais permitido. “É uma medida inevitável e absolutamente necessária. Coloca o Brasil em linha com o que é praticado na grande maioria dos países”, diz Zylberstajn. Segundo ele, o tempo de contribuição deve servir principalmente como referência para o cálculo do benefício.

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    (Arte/VEJA)

    Idade mínima universal

    A partir de 2031, encerrado o período de transição do velho para o novo sistema, um homem necessariamente terá de completar 65 anos de idade, além de ter recolhido a contribuição ao INSS durante vinte anos, para se aposentar; para mulheres, a idade mínima será de 62 anos, com o mesmo tempo de recolhimento ao INSS. São exigências que acompanham o aumento da expectativa de sobrevida dos idosos no país. Em 1991, um homem que completasse 65 anos viveria, em média, até os 77 anos. Hoje, em 2019, esse mesmo cidadão vive, em média, até os 82 anos. Isso significa que o INSS tem de pagar o benefício por mais cinco anos para esse trabalhador. Não é sustentável: se os benefícios se alongam, é preciso fazer um ajuste no tempo de contribuição que financia o gasto extra. Caso a proposta entre em vigor ainda em 2019, as idades mínimas para a aposentadoria começam em 61 anos para homens e em 56 anos para mulheres, tanto no setor privado como no público. Daí as idades aumentam gradativamente até chegar a 65 e 62 anos.

    Redução das exceções

    Categorias que não tinham exigência de idade mínima para a aposentadoria passarão a tê-la: é o caso de professores (homens e mulheres) de escolas privadas, que precisarão completar 60 anos para poder requerer o benefício. Para policiais civis e federais, a exigência será de 55 anos. Atualmente, professoras da rede privada conseguem se aposentar com 25 anos de contribuição; policiais, em qualquer idade, desde que tenham recolhido um valor para o INSS por um período mínimo. “O que destoa no Brasil em relação a outros países é a quantidade de regimes de Previdência diferenciados, especiais, para funcionários públicos, professores, policiais militares e bombeiros”, afirma o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper.

    Alíquotas de contribuição

    O governo propõe alterar os porcentuais que incidem sobre os rendimentos de trabalhadores tanto do setor privado como do público. Salários mais baixos passarão a sofrer um desconto menor, e os mais elevados terão de pagar bem mais. A reforma quer reduzir de 8% para 7,5% a alíquota de contribuição de quem ganha até um salário mínimo — dois em cada três beneficiários do INSS estão nessa faixa. Atualmente existem três alíquotas, de 8%, 9% e 11%. O governo propõe cobrar taxas diferentes dentro de cada faixa salarial, numa lógica semelhante à adotada pela Receita Federal para calcular o imposto de renda. No setor público, a mudança será mais profunda, uma vez que o valor das aposentadorias não tem limite e é mais elevado do que no privado (no qual é respeitado o teto de 5 839,45 reais). Atualmente, a alíquota máxima que recai sobre o salário de um servidor vai de 11% a 14%; com a cobrança por faixas, ela chegará a até 22% para quem ganha acima de 39 000 reais, o teto oficial de rendimento do setor público (frequentemente desrespeitado). Mas outros servidores que estejam na base da pirâmide passarão a contribuir com uma alíquota mais baixa, de 7,5%. “Essa proposta vai ao encontro da Constituição, que prevê uma alíquota do INSS progressiva”, diz Nery.

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    Fila
    ROTINA – Fila em agência do INSS: nada muda para quem já se aposentou (Claudio Gatti/.)

    Servidores no teto do INSS

    Trabalhadores que ingressaram no setor público entre 2004 e 2013 tinham direito a receber uma aposentadoria equivalente à média de 80% dos seus maiores salários de contribuição. Com a reforma, seus vencimentos terão de respeitar o teto do INSS para o setor privado — hoje, 5 839,45 reais. O privilégio de receber acima do teto ficará restrito a quem ingressou até 2003. “A maior conta da reforma vai recair sobre os funcionários públicos, o que faz todo o sentido porque eles formam o grupo mais privilegiado da aposentadoria”, diz Zylberstajn.

    Regras de transição

    Para os trabalhadores que já estão no mercado e contribuem para o INSS, haverá três modelos de transição para que o impacto da reforma não seja tão repentino. Um deles será oferecido apenas a quem estiver a menos de dois anos da aposentadoria pelas regras atuais: será necessário trabalhar o equivalente a 50% do tempo que faltava a mais. Alguém que esteja a um ano da aposentadoria terá de contribuir por um ano e meio. A proposta de reforma de Michel Temer estabelecia uma transição mais suave, em vinte anos, mas, de dezembro de 2016 (quando foi apresentada) para cá, o rombo da Previdência aumentou tanto que Bolsonaro, contra a sua vontade, cedeu aos apelos do ministro Paulo Guedes: cravou em doze anos o período de adequação às novas regras, a fim de atingir a meta de economizar 1 trilhão de reais em dez anos.

    Aposentadoria com valor cheio

    A reforma determina que um trabalhador do setor privado, homem ou mulher, precisará ter contribuído por quarenta anos para ter direito ao valor cheio da aposentadoria dentro dos cálculos devidos (a média dos salários de contribuição). Isso significa que um homem que queira se aposentar aos 65 anos de idade deverá ter recolhido a contribuição desde os 25 anos. Se a tiver recolhido para o INSS por vinte anos (o mínimo exigido), o seu benefício será equivalente a 60% dos salários médios de contribuição. Cada ano adicional de contribuição representará um acréscimo de 2 pontos porcentuais no valor do benefício.

    Capitalização

    O governo oficializou na proposta a criação de um regime de capitalização, cujas regras serão definidas em projeto de lei complementar. Cada trabalhador terá a sua conta para as reservas. Outros princípios foram antecipados: haverá a garantia de um piso equivalente a um salário mínimo para quem contribuir, o que afasta, num primeiro momento, o temor de que o valor médio dos benefícios ficasse muito abaixo desse rendimento de referência. Essa é a maior crítica ao sistema no Chile, onde foi adotado na década de 80. O governo criará um fundo solidário para complementar a aposentadoria de quem precisar.

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    Com tantos ataques a privilégios, é esperado que a batalha pela aprovação do projeto seja árdua, dada a força das corporações. “Quando a proposta não é conhecida, existe certa aceitação na sociedade sobre a reforma. Mas na hora em que as pessoas ficam sabendo quanto serão afetadas, as resistências aparecem”, diz o economista Marcos Mendes, autor do livro Por que o Brasil Cresce Pouco?. A proposta de Bolsonaro passará agora por duas comissões na Câmara antes de ser levada para votação no plenário. Como se trata de uma emenda constitucional, precisará contar com o voto de 308 dos 513 deputados federais em dois turnos para que seja aprovada. Se tudo der certo, ela será encaminhada ao Senado, onde terá de receber 49 votos dos 81 senadores, em dois turnos, para ser implementada. Analistas preveem que o projeto poderá entrar em vigor em outubro (se não houver imprevistos, como uma crise política). Serão meses necessários e oportunos para aprofundar o debate. “O Brasil está pagando um preço altíssimo por não ter feito a reforma antes. Assistimos à degradação da infraestrutura pública, falta dinheiro para a saúde, segurança…”, afirma Lisboa, do Insper. Que os congressistas entendam a gravidade da situação.


    Missão: cortar na carne

    Escola Preparatória de Cadetes
    PRECOCE – Cadetes da Aeronáutica: ensino médio já conta para a Previdência (Johnson Barros/.)

    Oficiais da Aeronáutica podem começar a contagem de tempo para a aposentadoria aos 14 anos. Essa é a idade mínima para ingresso na Escola Preparatória de Cadetes do Ar, onde adolescentes cursam o ensino médio e recebem adestramento para sua futura carreira. Na Marinha, a entrada se dá a partir dos 15 anos. No Exército, dos 17. Esse mecanismo é que viabiliza a ida de militares para a reserva antes dos 45 anos — o que é um absurdo em qualquer lugar do mundo. Igual nas três Forças, o soldo de 1 044 reais mensais hoje não sofre desconto de contribuição previdenciária. O resultado desse arranjo é um rombo de 43,9 bilhões de reais só em 2018, quase 17% maior do que no ano anterior. Não é preciso ser matemático para perceber que tal equação é insustentável, especialmente porque os militares têm a menor alíquota: apenas 7,5%. Em trinta dias, porém, a situação deve mudar. O governo vai mandar para o Congresso um projeto que altera esse regime. Nele, o tempo de contribuição passa de trinta para 35 anos, e a alíquota é elevada para 10,5%. Participar do esforço para equilibrar o Orçamento, cortando na própria carne, será um sinal de patriotismo dos militares brasileiros.

    Publicado em VEJA de 27 de fevereiro de 2019, edição nº 2623

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