Era um pesadelo horripilante: o homem de capa preta, longas unhas e sem rosto arrastava a vítima para uma tumba; no momento em que o pobre-diabo era jogado na cova, vislumbrava finalmente a cara horrenda de seu algoz fantasmagórico. O cineasta José Mojica Marins contava que o sonho em questão inspirou o personagem que inscreveria seu nome de forma lapidar — ops — na história do cinema nacional: o Zé do Caixão.
Fruto legítimo das produções marginais da Boca do Lixo paulista, o diretor ganhou notoriedade nos anos 1960 graças a filmes de assombrosa precariedade. Nos créditos de À MeiaNoite Levarei Sua Alma (1964), o primeiro longa do Zé do Caixão, há agradecimentos à funerária que emprestou esquifes para os cenários. No filme seguinte, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), Marins teve como “figurantes” 500 aranhas de verdade. O espírito mambembe dava o tom também aos roteiros. Ao abraçar o absurdo e o nonsense sem pudor, ele inaugurou no país um gênero muito cultuado: o “terrir”, terror tão malfeito que provoca riso involuntário.
A ligação com o cinema foi inevitável. Seu pai, de origem espanhola, trabalhava como zelador de um cinema paulistano na década de 40. Já aos 6 anos, Marins brincava na sala de projeção. Na adolescência, ganhou uma câmera e juntava os amiguinhos para brincar de fazer filmes. Na fase adulta, ele se arriscou na seara dos faroestes. Mas logo venderia sua alma ao terror.
Os filmes de Marins ficaram datados e áridos de ver. Mas seu personagem se impõe na galeria de figuras folclóricas da nação. As excentricidades do cineasta contribuíram para sua fama. Como teste de fogo, ele obrigava os atores (muitos, aliás, não profissionais) a passar a noite em cemitérios. O modo como as mulheres eram tratadas em seus filmes possivelmente causaria gritaria hoje. Zé do Caixão estapeava donzelas em cena. No último trabalho, A Encarnação do Demônio (2008), fez a atriz Lenny Dark — sua mulher — parar no hospital depois que uma das 3 000 baratas com que “contracenava” entrou na orelha dela. Nos anos finais, já fragilizado, protagonizou um talk show bizarro — e divertidíssimo — no Canal Brasil. Morreu na quarta-feira 19, aos 83 anos, de broncopneumonia, em São Paulo.
Publicado em VEJA de 26 de fevereiro de 2020, edição nº 2675