Faz quase vinte anos que R. Kelly, cantor e compositor de R&B de sucesso e autor de hits como I Believe I Can Fly e You Are Not Alone (escrita para Michael Jackson), escapa da justiça. Acusado em 2000 quando veio à tona um vídeo em que é visto com uma garota de 14 anos, ele foi absolvido em 2008, mas nunca pararam as denúncias de sexo com menores e de formação de uma espécie de culto em que meninas sofrem abusos de diversos tipos e são afastadas de suas famílias. Em janeiro, porém, a minissérie documental de seis episódios Sobreviver a R. Kelly, que bateu recorde de audiência nos Estados Unidos, aqueceu novamente o caso.
A produção traz depoimentos de mais de dez mulheres e dezenas de outras pessoas, inclusive de sua ex-mulher, Andrea Kelly, e de dois irmãos, além de famosos como John Legend e Sparkle. Depois da exibição, o músico perdeu sua gravadora e teve shows cancelados e, em fevereiro, foi acusado de abuso sexual por quatro mulheres e preso, saindo alguns dias mais tarde sob fiança.
Em entrevista a VEJA, a ativista e produtora de Sobreviver a R. Kelly Dream Hampton (ou dream hampton, em minúsculas mesmo, como ela prefere), afirma que não esperava tamanha repercussão e que o projeto tem sabor amargo. “Não estou desfrutando do sucesso. É um projeto sobre trauma. Sobre nossa cumplicidade. Não é algo que me dê muita alegria”, diz.
A série estreia no Brasil nesta sexta-feira, às 20h40, no canal pago Lifetime, com dois episódios seguidos – o canal está com sinal aberto nas operadoras NET, Claro TV, Vivo, Algar e Oi TV. As demais partes, apresentadas de duas em duas a cada semana, vão ao ar no sábado e no domingo, sempre a partir das 20h40.
Como conseguiu convencer tantas mulheres e familiares das vítimas a aparecerem no documentário? Quando entrei no projeto, quatro ou cinco das sobreviventes já tinham se comprometido, bem como alguns dos pais. Mas a história foi crescendo. No começo, achamos que íamos ter duas horas de documentário. Acabamos com seis. Variou muito a disposição de cada um de falar comigo. Ninguém terminou uma entrevista sem chorar. Ninguém terminou uma entrevista sem pedir um tempo para se recompor. Sinto muito dizer que não pude ser uma irmã para elas, porque precisávamos ter advogados na sala de entrevista – tive de fazer as entrevistas como se fosse uma advogada. Precisávamos corroborar as histórias e as pessoas que não quiseram ser filmadas deram essa confirmação. Mas sempre fomos claros em nossas intenções, garantimos que íamos nos concentrar nas histórias das mulheres. Elas quiseram ter garantia de que não seriam exploradas.
Você era fã de R. Kelly? Eu parei de ser fã dele por volta de 2000, quando soube do seu vídeo com a garota de 14 anos. Antes das redes sociais, aquele vídeo se tornou viral nas ruas. Eles vendiam em barbearias e todo tipo de lugar. Eu chamo de vídeo de abuso, porque não tem a ver com sexo. É degradação. Primeiro porque ela tinha 14, e ele, mais de 30. É horrível, só humilhação dessa menina. Ao mesmo tempo, sendo uma pessoa negra nos Estados Unidos, eu sei que ele faz música especificamente para pessoas negras. Ele não é um músico pop, é um músico de R&B. Então sabia que havia pessoas ferozmente leais a ele, que o amam e o defendem. Sabia que teria de enfrentar isso, que haveria muita oposição. E realmente houve.
Acredita que o movimento Me Too é a razão pela qual mais pessoas estão dispostas a ouvir essas denúncias? Sem dúvida é uma parte da razão. Mas o Me Too também foi possível por causa das redes sociais, que amplificam essas histórias que talvez teriam sido abafadas. As matérias sobre R. Kelly começaram em 2000, no jornal Chicago Sun Times. Mas é uma questão de perspectiva. Quando R. Kelly se casou com a cantora Aaliyah no meio dos anos 1990, pensamos: “Ok, um homem de 27 anos se apaixonou por uma adolescente de 15”. Não era a primeira vez, Elvis Presley tinha 20 e poucos quando conheceu Priscilla, que tinha 14. Mas as matérias do jornal deixaram claro que não era uma história de amor, que era um padrão, que havia outras adolescentes.
Acredita que a série possa alertar garotas e pais? Sim. Porque os predadores usam certos padrões. Eles isolam as crianças e adolescentes de seus pais, encorajam que mintam para sua família. Fazem promessas que nunca cumprem.
Mas, mesmo com as denúncias do passado, por que alguns pais deixaram suas meninas se aproximarem dele? Eu fiz essa pergunta, e os pais me deram uma resposta que acho complicada: “Bem, ele foi considerado inocente”. Porque, embora de fato ele tenha sido declarado inocente naquele julgamento de 2008, todos sabemos que não é verdade.
Uma das minhas heroínas é do Brasil: Marielle Franco. Eu penso nela sempre. Penso em muitas mulheres do mundo que, como ela, sacrificaram tanto
Dream Hampton, produtora de 'Sobreviver a R. Kelly'
Você viu a entrevista de R. Kelly dada a Gayle King no programa CBS This Morning, dias depois de sua soltura, em que ele se declarou inocente? O R. Kelly fez uma ópera hip hop hilária chamada Trapped in the Closet, que virou um hit com os hipsters. Pois, quando assisti à entrevista dele a Gayle King, achei que estava vendo um pedaço de Trapped in the Closet. Ele estava atuando. Acho que ensaiou tudo com seu time, seu assessor de imprensa, seus amigos. Ele treinou as meninas (ainda há garotas que moram com o músico e se dizem suas namoradas), que repetiam as mesmas falas. Mas não fui só eu. No Black Twitter (rede social que reúne apenas negros), que é extremamente influente, 95% acham que foi uma piada.
Então ele estava fingindo? Sim. Mas vou dizer que ele perdeu uma grande oportunidade. Recentemente vimos Michael Cohen, ex-advogado do presidente Donald Trump, ir ao Congresso admitir que tinha mentido para o próprio Congresso antes, mas que agora ia dizer a verdade. R. Kelly podia ter dito a Gayle: “Eu sofri abusos sexuais dos 7 aos 14 anos, não sei o que é amar e fazer sexo saudavelmente. Tenho 52 anos e preciso de ajuda”. Se ele tivesse feito isso, a maioria dos negros, que são sua base de fãs, teria aberto seus braços para ele com amor e compaixão.
Sobreviver a R. Kelly chega ao Brasil na mesma época em que outro documentário traz depoimentos de supostas vítimas de Michael Jackson, Deixando Neverland. Você viu? Não vi tudo. Tenho de admitir que, embora não seja fã de R. Kelly, eu sou muito fã de Michael Jackson. Então parte meu coração. Eu costumava tocar Michael Jackson para minha filha. Ele sempre teve esse efeito mágico em crianças em particular, mas acho que abusou desse poder.
Ficou surpresa com as consequências da série, como a prisão de R. Kelly? Sim. Não esperava isso. Mas as mulheres que apareceram no documentário disseram que gostariam que ele procurasse ajuda para parar de machucar meninas. Nenhuma afirmou que queria que ele fosse para a prisão. Ainda torço para que as duas garotas que ainda estão com ele finalmente percebam do que se trata, que não é diferente de uma rede de exploração sexual. Então eu não estou desfrutando do sucesso. É um projeto sobre trauma. Sobre nossa cumplicidade. Não é algo que me dê muita alegria.
Você também é ativista. O que tem a dizer para as mulheres? Sempre tente ser você mesma da forma mais autêntica possível. Isso não quer dizer que não haja consequências. Uma das minhas heroínas é do Brasil: Marielle Franco. Eu penso nela sempre. Penso em muitas mulheres do mundo que, como ela, sacrificaram tanto, às vezes até sua vida, para fazer deste mundo um lugar melhor, não apenas para as mulheres, mas para todos os seres humanos. Essas são minhas heroínas.