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Viagem literária

Em coletânea de textos escritos durante a Copa da Rússia, o crítico Flávio Ricardo Vassoler mistura ficção com ensaio para retratar o país de Dostoiévski

Por Astier Basílio
Atualizado em 18 jul 2019, 11h07 - Publicado em 24 Maio 2019, 07h00

A implantação, em 1917, de um Estado sem religião pelos revolucionários bolcheviques, numa Rússia semifeudal, fez emergir contraditoriamente uma estranha liturgia laica: o culto aos líderes ateus. Lenin, o profeta máximo, teve seu cadáver embalsamado e exposto numa espécie de altar para adoração. Se os muçulmanos têm como obrigação ir, ao menos uma vez na vida, a Meca, não foram poucos os adeptos da religião do socialismo que peregrinaram à União Soviética e depois, como entusiasmados evangelistas, apregoaram as boas-novas do paraíso implantado na Terra.

De John Steinbeck a Walter Benjamin, e, entre os brasileiros, Jorge Amado, Graciliano Ramos e, mais recentemente, Sergio Faraco, as crônicas das viagens à Rússia tornaram-se quase um subgênero literário. No fim dos anos 1950, com o triunfo da revolução cubana, a “Terra Santa” dos peregrinos da esquerda migrou para o Caribe. Poucos anos antes da mudança de endereço, viera à tona a revelação dos crimes de Stalin, martelada a trincar os alicerces daquela opulenta catedral de fé no comunismo, que se esfacelou de vez com a desintegração da União Soviética, em 1991. É pelas ruínas desse legado simbólico e cultural que o professor Flávio Ricardo Vassoler passeia, como uma espécie de Dante a descer pelos círculos da Rússia moderna. E, se Dante era guiado pelo poeta latino Virgílio, o guia de Diário de um Escritor na Rússia bem poderia ser o fantasma de Fiódor Dostoiévski, autor em cuja obra Vassoler é um renomado especialista.

A maioria dos 31 textos reunidos foi publicada em uma coluna cultural mantida por Vassoler no site de VEJA durante a Copa do Mundo de 2018, quando o autor viajou por várias cidades russas. História, literatura, política, cultura foram abordadas sob a forma de crônica de viagem, ensaio e ficção. Os gêneros se atravessam, e a tentação seria dizer que são como matrioscas, mas as fronteiras — em vez de incluírem umas às outras — parecem desenhar movimentos de balé nos quais um gesto reatualiza o anterior. Nesse caminho, Vassoler nos brinda com personagens da estirpe do major Andrei Maiorov, comandante soviético na guerra contra o Afeganistão que impressionou as tropas inimigas com sua coragem ao aceitar as condições de ir sozinho e desarmado negociar uma troca de reféns.

DIÁRIO DE UM ESCRITOR NA RÚSSIA – de Flávio Ricardo Vassoler (Hedra; 310 páginas; 58 reais) (//Divulgação)

Além das obrigatórias Moscou e São Petersburgo, fizeram parte do roteiro Níjni Novgorod, Kazan, Saransk, Samara, Volgogrado (que se chamou Stalingrado entre 1925 e 1961), Rostov, Sochi, Kaliningrado. O território real se amalgama com o literário: evocam-se as obras de Gógol, Tolstói, Dostoiévski, Pasternak, entre outros mestres. Exímio na descrição de paisagens, de cheiros e sabores, em sua visita ao Mercado Central de Rostov, Vassoler nos conduz a um passeio sinestésico com “roscas e bombas de chocolate; tortas de nata; pastéis, entre delgados e bojudos, com creme de limão; bolachas secas, crispadas de açúcar; (…) doces compactos como tijolos e nomes impronunciáveis”.

Os textos mais emblemáticos — o “Inferno” de sua jornada dantesca — são sobre a II Guerra Mundial, entre os quais se destaca o antológico “Se Moscou é o cérebro da União Soviética, Stalingrado é o coração da Pátria-Mãe”, no qual descemos aos intestinos da épica batalha. Em sua visita a um museu em Volgogrado, Vassoler vislumbra o uniforme de um soldado morto: “Através de uma campânula de vidro retangular, começo a contar, uma a uma, as 168 perfurações que transpassam o sobretudo de Glazkov. (A náusea me toma à altura do 37º orifício — começo a torcer para que, quando da segunda bala, Glazkov já tenha sido agraciado com uma morte imediata e redentora.)”.

CÍRCULO DO INFERNO – Stalingrado devastada na II Guerra: o coração da pátria (Herbe/Corbis/Getty Images)

O instante em que a ficção mais brilha é no inventivo “Stalin leitor de Dostoiévski”, no qual Vassoler imagina a destruição do Teatro do Exército Russo, em Moscou. Alinhavando as frestas entre fato histórico e elementos ficcionais, Vassoler fantasia prisioneiros alemães assistindo a uma montagem de Os Demônios, na presença do próprio Stalin, em um palco reconstruído por eles. Embora seja verídico que vários prisioneiros de guerra trabalharam em reconstruções na Rússia, o Teatro do Exército não precisou ser refeito, pois escapou incólume ao conflito.

Em parte considerável dos textos, Vassoler, na tentativa de imitar a polifonia de Dostoiévski, introduz molduras ficcionais desnecessárias. São diálogos rígidos, em que os personagens, como bonecos de ventríloquo, dublam as teses e análises do autor. Embora pertinentes e agudas, tais reflexões teriam mais força se expostas na forma do ensaio. Faltou a Vassoler, portanto, abandonar Dostoiévski, seu guia, como Dante fez ao final de sua jornada pelo Purgatório.

Publicado em VEJA de 29 de maio de 2019, edição nº 2636

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